domingo, 22 de novembro de 2020

1950, RIO DE JANEIO: OBDULIO


A coisa está feia, mas Obdulio estufa o peito, pisa forte e mete a perna. O capitão do time uruguaio, negro mandão e fornido, não se encolhe. Obdulio cresce quando a imensa multidão ruge mais, multidão inimiga, nas arquibancadas.


Surpresa e luto no estádio do Maracanã: o Brasil, goleador, demolidor, favorito de ponta a ponta, perde a última partida no último minuto. O Uruguai, jogando com alma e vida, ganha o campeonato mundial de futebol.


Ao anoitecer, Obdulio Varela foge do hotel, assediado por jornalistas, torcedores e curiosos. Obdulio prefere celebrar na solidão. E vai beber por aí, em qualquer botequim; mas em todas as partes encontra brasileiros chorando.


- Culpa daquele Obdulio – dizem, bandos em lágrimas, os que há algumas horas vociferavem no estádio. – O Obdulio ganhou o jogo.


E Obdulio sente um estupor pela raiva que teve deles, agora que os vê um a um. A vitória começa a pesar em suas costas. Ele arruinou a festa dessa gente boa, e sente vontade de pedir perdão por ter cometido a tremenda maldade de ganhar. Por isso, continua caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, de bar em bar. E assim amanhece, bebendo, abraçando os vencidos.


(Eduardo Galeano – Amar amares)

sábado, 21 de novembro de 2020

 MAIO, 4: ENQUANTO A NOITE DURAR


Em 1937 morreu, aos vinte e seis anos, Noel Rosa.


Esse músico da noite do Rio de Janeiro, que em vida só conheceu a praia por fotografias, escreveu e cantou sambas nos bares da cidade que os canta até hoje.


Num desses bares um amigo o encontrou, na noturna hora de dez da manhã.


Noel cantarola uma canção recém-parida.


Na mesa havia duas garrafas. Uma de cerveja e outra de cachaça.


O amigo sabia que a tuberculose estava matando Noel Rosa. Noel adivinhou a preocupação em seu rosto, e sentiu-se obrigado a dar uma lição sobre as propriedades nutritivas da cerveja. Apontou a garrafa, sentenciou:


- Isso aqui alimenta mais que um prato de boa comida.


O amigo, não muito convencido, apontou para a garrafa de aguardente:


- E isso aqui?


E Noel explicou:


- É que não tem a menor graça comer sem ter uma coisinha para acompanhar.


(Eduardo Galeano – Amar a mares)

sábado, 26 de setembro de 2020

O AMOR

 

Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

 

- Te cortaram? Perguntou o homem.

 

- Não – disse ela – sempre foi assim.

 

Ele a examinou de perto. Coçou a cabeça. Havia ali uma chaga aberta. Disse:

Não comas mandioca, nem bananas, nem nenhuma fruta que se rasgue ao amadurecer. Eu te curarei. Deita-te na rede e descansa.

 

Ela obedeceu. Com paciência tomou a mistura de ervas e deixou que lhe aplicasse as pomadas e unguentos. Tinha que apertar os dentes para não rir quando ele dizia:

 

- Não te preocupes.

 

Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver de jejum e estendida na rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.

Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:

 

- Encontrei! Encontrei!

 

Acabava de ver um macaco curando uma macaca na copa de uma árvore.

 

- É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.

 

Quando terminou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, deitados juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tamanha sua beleza que morriam de vergonha os sóis e os deuses.

 

(Eduardo Galeano – Amar a mares)

 


domingo, 13 de setembro de 2020

O DERROTADO INVENCÍVEL

 

– Gigantes!

(Moinhos

de vento...)

– Malina

mandinga,

traça

d’espavento!

(Moinhos e moinhos

de vento...)

– Gigantes!

Seus braços

de aço

me quebram

a espinha

me tornam

farinha?

Mas brilha

Divino

o santelmo

que rege

e ilumina

meu valimento.

Doído,

moído,

caído,

perdido,

curtido,

morrido,

eu sigo,

persigo

o lunar

intento:

pela justiça no mundo,

luto, iracundo.

 

(Carlos Drummond de Andrade – As impurezas do branco)


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

 

CELEBRAÇÃO DA CORAGEM 2

 

Perguntei a ele se tinha visto algum fuzilamento. Sim, tinha visto. Chino Heras tinha visto um coronel ser fuzilado, no final de 1960, no quartel de La Cabana. A ditadura de Batista tinha muitos carrascos, coisa ruim a serviço da dor e da morte; e aquele coronel era um dos muitos, um dos piores.

 

Estávamos em meu quarto, numa roda de amigos, em um hotel de Havana. Chino contou que o coronel não tinha querido que vendassem os seus olhos, e sua última vontade não fora um cigarro: o coronel pediu que o deixassem comandar seu próprio fuzilamento.

 

O coronel gritou: Preparar! e gritou: Apontar! Quando ia gritar: Fogo!, o fuzil de um dos soldados travou. Então o coronel interrompeu a cerimônia.

 

— Calma — disse para a fila dupla de homens que deviam matá-lo. Eles estavam tão próximos que quase podia tocá-los.

 

— Calma — disse —. Não fiquem nervosos.

 

E novamente mandou preparar armas, e mandou apontar, e quando estava tudo em ordem, mandou disparar. E caiu.

 

Chino contou esta morte do coronel, e ficamos calados. Éramos vários naquele quarto, e todos nos calamos.

 

Esticada feito uma gata sobre a cama, havia uma moça de vestido vermelho. Não recordo seu nome. Recordo suas pernas. Ela tampouco disse nada.

 

Passaram-se duas ou três garrafas de rum e no fim, todo mundo foi dormir. Ela também. Antes de ir embora, da porta entreaberta, olhou para o Chino, sorriu e agradeceu:

 

— Obrigada — disse — Eu não conhecia os detalhes. Obrigada por ter me contado.

 

Depois soubemos que o coronel era pai da moça.

 

Uma morte digna é sempre uma boa história para se contar, mesmo que seja a morte digna de um filho da puta. Mas eu quis escrevê-la, e não consegui. Passou o tempo e esqueci.

 

Da moça, nunca mais ouvi falar.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

 

OUTRO MÚSCULO SECRETO

 

Nos últimos anos, a Avó estava se dando muito mal com o próprio corpo. Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la. — Ainda bem que a mente viaja sem passagem — dizia. Eu estava longe, no exílio. Em Montevidéu, a Avó sentiu que tinha chegado a hora de morrer. Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo.

 

Chegou de avião, acompanhada pela minha tia Emma. Viajou entre as nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avião atravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobre a estrada de pedras.

 

Ficou em casa um mês. Comia mingaus de bebê e roubava caramelos. No meio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu avô, que tinha morrido há quarenta anos. Às vezes tentava alguma fuga até a praia, mas suas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada.

 

No final, disse:

 

— Agora, já posso morrer.

 

Disse que não ia morrer na Espanha. Queria evitar que eu tivesse a trabalheira burocrática, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muito bem que eu odiava a burocracia.

 

E regressou a Montevidéu. Visitou a família toda, casa por casa, parente por parente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagem não tinha culpa. E então, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu.

 

Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da árvore que ela tinha escolhido.

 

Às vezes, a Avó vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e ela é um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas águas.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)

domingo, 30 de agosto de 2020

 

UM MÚSCULO SECRETO

 

No meio-dia da memória, um meio-dia do exílio. Eu estava escrevendo, ou lendo, ou me aborrecendo em minha casa no litoral de Barcelona, quando o telefone tocou e o telefone me trouxe, cheio de assombro, a voz de Fico.

 

Fazia mais de dois anos que Fico estava preso, fora solto no dia anterior. O avião o trouxera da cela de Buenos Aires para o aeroporto de Londres. Do aeroporto ele me telefonava pedindo que fosse vê-lo, venha no primeiro avião, tenho muita coisa para contar, tanta coisa para falar, mas uma coisa eu quero dizer já, quero que você saiba:

 

— Não me arrependo de nada.

 

Naquela mesma noite nos encontramos em Londres.

 

No dia seguinte, acompanhei-o ao dentista. Não tinha remédio. Os choques elétricos nas câmaras de tortura afrouxaram seus dentes de cima, e podia dar aqueles dentes por perdidos.

 

Fico Vogelius era o empresário que financiara a revista Crísis, e não havia posto somente dinheiro, mas a alma e a vida naquela aventura, e me dera plena liberdade para fazer a revista do jeito que eu quisesse. Enquanto durou, três anos e pouco, quarenta números, Crísis soube ser um teimoso ato de fé na palavra solidária e criativa, aquela que não é nem finge ser neutra, a voz humana que não é eco nem soa só por soar.

 

Por causa desse delito, pelo imperdoável delito de Crísis, a ditadura militar argentina seqüestrou Fico, e o encarcerou e torturou; e ele salvara a vida por um fio, graças ao fato de ter conseguido gritar o próprio nome enquanto era seqüestrado.

 

A revista havia caído sem se curvar, e nós estávamos orgulhosos dela. Fico tinha uma garrafa de sei lá qual vinho francês antigo e bem-amado. Com aquele vinho brindamos, em Londres, à saúde do passado, que continuava sendo um companheiro digno de confiança.

 

Depois, alguns anos depois, acabou-se a ditadura militar. E em 1985, Fico decidiu que Crísis devia ressuscitar. E estava cuidando disso, outra vez disposto a queimar tempo e dinheiro, quando ficou sabendo que tinha um câncer.

 

Consultou vários médicos, em vários países. Uns lhe davam vida até outubro, outros até novembro. De novembro não passa, sentenciavam todos. Ele estava cadavérico, tremendo de operação a operação; mas um brilho de desafio acendia seus olhos.

 

Crísis reapareceu em abril de 86. E no dia seguinte ao renascimento de Crísis, meio ano depois de todos os prognósticos, Fico deixou-se morrer.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)

sábado, 15 de agosto de 2020

O desejo de ordem quer transformar o mundo humano num reino inorgânico em que tudo acontece, tudo funciona, tudo é submetido a uma vontade impessoal. O desejo de ordem é ao mesmo tempo desejo de morte, porque a vida é perpétua violação da ordem. Ou, inversamente, o desejo de ordem é o pretexto virtuoso pelo qual a raiva do homem pelo homem justifica suas perversidades.

 

(Milan Kundera – A valsa dos adeuses)

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Tudo foi crescendo de forma tão pujante que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma forma na trama que estávamos enredados. Naquela terra mesmo, entranhada na secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida.

 

(Itamar Vieira Junior – Torto arado)

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A gratidão (charis) é essa alegria da memória, esse amor do passado – não o sofrimento do que não é mais, nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna a idéia da morte indiferente, como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará, não poderia tomar de nós: são bens imortais, diz Epicuro, não porque não morremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia e definitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nos dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.

 

(André Comte-Sponville – Pequeno tratado das grandes virtudes)

domingo, 9 de agosto de 2020

- Tenho a impressão de que você, porque vai matar-se, me quer esmagar com sua superioridade...

 

- Fico espantadíssimo vendo que os homens continuam a viver, disse Kirilov, que novamente não escutara a observação de Pior Stepanovitch.

 

- Hum! admitamos, é uma idéia, mas...

 

- Macaco! és muito solícito em concordar, a fim de te apoderares de mim. Cala-te! Não compreendes nada. Se Deus não existe, eu sou Deus.

 

- É precisamente isso que nunca pude compreender em você: por que é Deus?

 

- Se Deus existe, toda vontade lhe pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade.

 

- Sua própria vontade? E por que deve proclamar?

 

- Porque é a mim, doravante, que toda vontade pertence. Será possível que não haja ninguém, no planeta inteiro, que após matar a Deus, acreditando na sua própria vontade, atreva-se a proclamar essa vontade na sua forma suprema? É como um pobre que herdasse uma fortuna, e tremesse, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se muito fraco para tal façanha. Quero proclamar minha própria vontade. Mesmo que eu seja o único, hei de o fazer.

 

- Pois faça-o.

 

- Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade.

 

- Mas você não é o único. Muitas pessoas se suicidaram antes.

 

- Por razões sem importância. Mas sem nenhuma razão, simplesmente a fim de proclamar a sua vontade, eu sou o único.

 

“Não ele não se há de matar”, pensou Pior Stepanovitch. E disse:

 

- Pois fique sabendo que eu, se estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso lhe indicar a quem matar. E nesse caso, você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A gente entraria numa combinação.

 

- Matar a outrem, seria a mais baixa manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu quero a forma suprema, e hei de matar-me.

 

“Tirou isso do próprio bestunto”, resmungou irritado Pior Stepanovitch.

 

- Tenho que proclamar minha incredulidade, tornou Kirilov que continuava a caminhar dum lado para o outro. Para mim, a idéia mais elevada é a negação da existência de Deus. Toda a história da humanidade me presta testemunho. Até agora o homem não tem feito senão inventar Deus, a fim de viver sem matar-se; é essa a história do mundo até nossos dias! Só eu, pela primeira vez na história do mundo, recusei-me a inventar Deus. Saibam-no todos, de uma vez para sempre!

 

(Fiódor Dostoiévski – Os demônios)   


segunda-feira, 30 de março de 2020


Alguém, por acaso, ouviu alguma vez dizer-se que os grandes improvisadores, foram, ao mesmo tempo, grandes poetas? Na política ocorre o mesmo que na poesia. As revoluções não se fazem por decreto. Depois da formidável experiência que os povos fizeram em 1848 e 1849, para provocar uma insurreição nacional é necessário algo mais que manifestos escritos por líderes que se encontram distantes.

(Karl Marx – A insurreição de Milão)

domingo, 29 de março de 2020


Nos estágios mais primitivos do desenvolvimento, o indivíduo se manifesta de modo mais cabal precisamente porque ainda não elaborou completamente todas as suas relações e não as contrapôs a si mesmo como forças sociais e relações independentes de si mesmo. É tão ridículo lamentar nostalgicamente aquela plenitude primitiva quanto acreditar que é necessário condenar-se a esta completa desolação. A visão burguesa jamais se elevou acima desta oposição romântica e ela a acompanhará como oposição legítima até a sua morte piedosa.

(Karl Marx – Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020


— Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga. 

— A prodigalidade também existia em nossa casa.

— Como, meu filho?

— A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.

— Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício nela, salvo nos dias de festa.

— Mas comemos sempre com apetite.

— O apetite é permitido, não agrava nossa dignidade, desde que seja moderado.

— Mas comemos até que ele desapareça; é assim que cada um em casa sempre se levantou da mesa.

— É para satisfazer nosso apetite que a natureza é generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por merecê-los.

Não fosse o apetite, não teríamos forças para buscar o alimento que torna possível a sobrevivência. O apetite é sagrado, meu filho.

— Eu não disse o contrário, acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome.

— Você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve desesperar-se, muitas vezes é só uma questão de paciência, não há espera sem recompensa, quantas vezes eu não contei para vocês a história do faminto?

— Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.

— Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto. Nada te faltava. Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de famintos, que nenhuma delas agora vem a propósito, tornando muito estranho tudo o que você fala. Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas idéias. Palavra com palavra, meu filho.

— Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.

— E o que é que não te davam aqui dentro?

— Queria o meu lugar na mesa da família.

— Foi então por isso que você nos abandonou: porque não te dávamos um lugar na mesa da família?

— Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis, ao deixar a casa, foi poupar-lhes o olho torpe de me verem sobrevivendo à custa das minhas próprias vísceras.

— O pão contudo sempre esteve à mesa, provendo igualmente a necessidade de cada boca, e nunca te foi proibido sentar-se com a família, ao contrário, era esse o desejo de todos, que você nunca estivesse ausente na hora de repartir o pão.

— Não falo deste alimento, participar só da divisão deste pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade: seu consumo só prestaria para alongar a minha fome; tivesse de sentar-me à mesa só com esse fim, preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse a vida.

— Do que é que você está falando?

— Não importa.

— Você blasfemava.

— Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez a vida eu falava como um santo.

— Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.

— Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor fala, existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde.

— Não há proveito em atrapalhar nossas idéias, esqueça os teus caprichos, meu filho, não afaste o teu pai da discussão dos teus problemas.

— Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.

— Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo.

— Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos.

— É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já é um bem que transferimos, se transferimos a espera para gerações futuras, pois há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.

— Ninguém vive só de semear, pai.

— Claro que não, meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.

— Isso já não me encanta, sei hoje do que é capaz esta corrente; os que semeiam e não colhem, colhem contudo do que não plantaram; deste legado, pai, não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo para frente? Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés também; por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não vejo diferença, tanto faz que as coisas andem para frente ou que elas andem para trás.

— Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.

— Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso só mesmo a vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo...

— Continue.

— E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.

— É muito estranho o que estou ouvindo.

— Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.

— Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?

— Não quero dizer nada.

— Você está perturbado, meu filho.

— Não, pai, eu não estou perturbado.

— De quem você estava falando?

— De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava.

— Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada.

— Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo.

— Mas sonega clareza para o teu pai.

— Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade.

— Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por ambiente hostil.

— Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida.

— Você me assusta, meu filho, sem te entender, entendo contudo teus disparates: não há hostilidade nesta casa, ninguém te nega aqui o direito à vida, não é sequer admissível que te passe esse absurdo pela cabeça!

— É um ponto de vista.

— Refreie tua costumeira impulsividade, não responda desta forma para não ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem necessitasse, o apoio da família!

— O senhor não me entendeu, pai.

— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?

— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.

— Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!

— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina.

— Já basta de extravagâncias, não prossiga mais neste caminho, não se aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento, ponha um ponto na tua arrogância, seja simples no uso da palavra!

— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.

— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez com esta confusão!

— Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais confusão.

— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as idéias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar; ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina, a nossa simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz; por isso, dobre a tua língua, eu já disse, nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor, como eu pensava, mas o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa!

Quanta amargura meu pai juntava à sua cólera! E que veleidade a minha, expor-lhe a carcaça de um pensamento, ter triturado na mesa imprópria uns fiapos de ossos, tão minguados diante da força poderosa de sua figura à cabeceira. Encolhido, senti num momento a presença da mãe às minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem me voltar, pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos para o meu pai: "Chega, Iohána! Poupe nosso filho!"

— Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha confusão, reconheço que não me fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero ser como meus irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os deixarei bem depois de o sol se pôr; farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez, vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer
de coração sincero, pai, todo o teu amor.

— Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao abandonar a casa, apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou a vista! Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi longa, a emoção foi grande, vai descansar, querido filho.

E o meu suposto recuo na discussão com o pai logo recebia uma segunda recompensa: minha cabeça foi de repente tomada pelas mãos da mãe, que se encontrava já então atrás da minha cadeira; me entreguei feito menino à pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma das faces contra o repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois seus olhos, o nariz e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos, espalhando ali, em língua estranha, as palavras ternas com que sempre me brindara desde criança: "meus olhos" "meu coração" "meu cordeiro"; largado naquele berço, vi que o pai saía para o pátio, grave, como se todo aquele transbordamento de afeto se passasse à sua revelia; empunhava o mesmo facão com que entrara pouco antes ali na copa, ia agora reunirse de novo às minhas irmãs perdidas numa azáfama animada em torno da mesa tosca, lá debaixo do telheiro dos fundos, onde preparavam as carnes para a minha festa; e eu tinha os olhos nessa direção, e me perguntava pelos motivos da minha volta, sem conseguir contudo delinear os contornos suspeitos do meu retorno, quando notei, além do pátio, um pouco adentrado no bosque escuro, o vulto de Pedro: andava cabisbaixo entre os troncos das árvores, o passo lento, parecia sombrio, taciturno.

(Raduan Nassar – Lavoura arcaica)