UM MÚSCULO SECRETO
No meio-dia da memória, um meio-dia do
exílio. Eu estava escrevendo, ou lendo, ou me aborrecendo em minha casa no
litoral de Barcelona, quando o telefone tocou e o telefone me trouxe, cheio de
assombro, a voz de Fico.
Fazia mais de dois anos que Fico estava
preso, fora solto no dia anterior. O avião o trouxera da cela de Buenos Aires
para o aeroporto de Londres. Do aeroporto ele me telefonava pedindo que fosse
vê-lo, venha no primeiro avião, tenho muita coisa para contar, tanta coisa para
falar, mas uma coisa eu quero dizer já, quero que você saiba:
— Não me arrependo de nada.
Naquela mesma noite nos encontramos em
Londres.
No dia seguinte, acompanhei-o ao
dentista. Não tinha remédio. Os choques elétricos nas câmaras de tortura
afrouxaram seus dentes de cima, e podia dar aqueles dentes por perdidos.
Fico Vogelius era o empresário que
financiara a revista Crísis, e não havia posto somente dinheiro, mas a alma e a
vida naquela aventura, e me dera plena liberdade para fazer a revista do jeito que
eu quisesse. Enquanto durou, três anos e pouco, quarenta números, Crísis soube
ser um teimoso ato de fé na palavra solidária e criativa, aquela que não é nem
finge ser neutra, a voz humana que não é eco nem soa só por soar.
Por causa desse delito, pelo imperdoável
delito de Crísis, a ditadura militar argentina seqüestrou Fico, e o encarcerou
e torturou; e ele salvara a vida por um fio, graças ao fato de ter conseguido
gritar o próprio nome enquanto era seqüestrado.
A revista havia caído sem se curvar, e
nós estávamos orgulhosos dela. Fico tinha uma garrafa de sei lá qual vinho
francês antigo e bem-amado. Com aquele vinho brindamos, em Londres, à saúde do
passado, que continuava sendo um companheiro digno de confiança.
Depois, alguns anos depois, acabou-se a
ditadura militar. E em 1985, Fico decidiu que Crísis devia ressuscitar. E
estava cuidando disso, outra vez disposto a queimar tempo e dinheiro, quando
ficou sabendo que tinha um câncer.
Consultou vários médicos, em vários
países. Uns lhe davam vida até outubro, outros até novembro. De novembro não
passa, sentenciavam todos. Ele estava cadavérico, tremendo de operação a
operação; mas um brilho de desafio acendia seus olhos.
Crísis reapareceu em abril de 86. E no
dia seguinte ao renascimento de Crísis, meio ano depois de todos os
prognósticos, Fico deixou-se morrer.
(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)
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