domingo, 14 de julho de 2019

Permanece em Guevara o que denominei figura do leitor. Aquele que está isolado, o sedentário em meio à marcha da história, contraposto ao político. O leitor como aquele que persevera, tranquilo, no deciframento dos signos. Aquele que constrói o sentido no isolamento e na solidão. Fora de qualquer contexto, em meio a qualquer situação, por força da própria determinação. Intransigente, pedagogo de si mesmo e de todos, nunca perde a convicção absoluta da verdade que decifrou. Uma figura extrema do intelectual como representante puro da construção do sentido (ou, em todo caso, de certa maneira de construir o sentido).

E no fim de Guevara as duas figuras voltam a unir-se, porque estão juntas desde o início. Há uma cena que funciona quase como uma alegoria: antes de ser assassinado, Guevara passa a noite anterior na escolinha de La Higuera. A única que assume uma atitude caridosa com ele é a professora do lugar, Julia Cortés, que lhe leva um prato do guisado que sua mãe está preparando. Quando entra, encontra Che jogado no chão da sala de aula, ferido. Então  e isso é a última coisa dita por Guevara, suas últimas palavras  Guevara mostra à professora uma frase escrita na lousa e lhe diz que a frase não está correta, que tem um erro. Com sua ênfase na perfeição, ele lhe diz: "Falta o acento". Faz essa pequena recomendação à professora. A pedagogia sempre, até o último momento. 

A frase (escrita na lousa da escolinha de La Higuera) é: "Yo sé leer". Que a frase seja essa, que no fim de sua vida a última coisa que ele anote seja uma frase que tem a ver com a leitura, é como um oráculo, uma cristalização quase perfeita.

(Ricardo Piglia - O último leitor)

sábado, 13 de julho de 2019

O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo.

(Antonio Candido - Entrevista para o jornal Brasil de Fato)

sábado, 6 de julho de 2019

"Eu tinha o voo, mas cortaram minhas asas. Perdi." Assim explicava seu silêncio. Jamais esclareceu quem havia cortado suas asas, talvez por pressentir que haviam sido cortadas sobretudo por ele mesmo.

(Eric Nepomuceno sobre Juan Rulfo)