terça-feira, 17 de dezembro de 2019


A relação de Deus com seu povo era uma relação dialética, complicada. Tomem o caso de Jonas. Lá está esse homem, cuidando de sua vida, quando Deus lhe ordena que vá a Nínive profetizar a destruição dessa cidade pecadora. Uma missão que Jonas recusa; não quer brigar com os ninivistas. Mas sabe que Deus não desistirá tão facilmente, portanto resolve fugir para bem longe. Toma um barco, mas nem assim escapa. O Senhor manda uma tempestade que alarma o capitão e os marinheiros; certos de que alguém a bordo provocou a cólera divina, tiram a sorte – e, claro, dá Jonas (Deus não joga, mas fiscaliza), que é atirado ao mar. Engolido por um grande peixe, é levado por este inusitado meio de transporte até Nínive. Resigna-se a cumprir a determinação divina, profetizando contra a cidade. Mas nesse meio-termo os ninivistas arrependeram-se, fizeram penitência; não há mais necessidade de ameaçá-los. O que deixa Jonas indignado: todo aquele trabalho para nada? Irritado, retira-se para o deserto onde se protege do sol sob uma árvore. Deus manda um bicho que devora a tal árvore. E com Jonas exposto ao sol (correndo o risco do câncer de pele) termina a história.

(Moacyr Scliar – Enigmas da culpa)  

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019


A clareza torna mais fácil o trabalho do leitor, e mais difícil o do autor (pela impossibilidade de iludir). É preciso buscá-la por pelo menos duas razões, portanto: por polidez em relação ao leitor; por exigência em relação a si mesmo. Um texto obscuro, nove em cada dez vezes, é uma grosseria e uma complacência. Quantos textos contemporâneos estão nesse caso? E, para uma obscuridade um pouco profunda (Mallarmé? Char?), quantas falácias?

É, enfim uma questão de coragem. A obscuridade florida de velas aqui e ali, lisonjeia: dá ao olhar uma poesia que ele não tem, à pele uma juventude que ela já não tem. A luz do dia, por sua vez, não perdoa.

Por causa disso, há velhas vaidosas que só saem de casa ao crepúsculo.

(André Comte-Sponville – Do corpo)

sábado, 7 de dezembro de 2019


O PROBLEMA

Depois de construir a fama de recluso e avesso a exposições, por volta dos 70 Mario Quintana se deixou descobrir explicitamente. Virou atração turística, como avalia o jornalista Ivo Stigger. “Sou a falta de assunto predileta das professoras de Português da Grande Porto Alegre”, divertia-se. Quando não podia fugir, desaparecendo nos corredores do prédio da Caldas Júnior ou enfiando-se num cinema, aceitava o sacrifício estoicamente.

Naquela tarde, um bando de normalistas do Instituto de Educação (ainda usavam o uniforme tradicional, saia plissada azul-marinho, blusa listrada em vermelho e branco, gravatinha) invadiu a redação e foi direto à mesa do poeta, tema involuntário de um trabalho em grupo.

Apegando-se ao fato de que ele sempre vivera sozinho, uma magrelinha loira faz a primeira pergunta:

– O senhor poderia falar sobre o problema da solidão?

Ele, dirigindo-se ao grupo:

– O maior problema da solidão, minhas filhas, é preservá-la.

(Juarez Fonseca – Ora bolas)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


A humanidade só formula os problemas que é capaz de resolver, dizia Marx. Há marxistas que preferem formular apenas os problemas já resolvidos (por Marx ou Lênin). Isso se chama dogmatismo.

(André Comte-Sponville – Do corpo)

domingo, 24 de novembro de 2019


Os evangelhos me entediam, como a Bíblia, como o Alcorão, como todos os textos religiosos. Escritos por devotos, e para devotos. Escritos por discípulos, e para fazer discípulos. Revelação, dizem eles; mas seus verdadeiros nomes são proselitismo, credulidade, propaganda. Que gênero literário mais suspeito? Que leitura mais indigesta? Algumas páginas são exceção, no Eclesiastes ou às vezes nos Evangelhos. Mas quantas carolices, o mais das vezes, e que tédio ao cabo de vinte linhas! Qualquer superstição é cansativa. Preserve-nos Deus dos profetas e dos apóstolos.

(André Comte-Sponville – Bom dia, angústia!)   

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


O dia que você viver verdadeiramente, já não terá medo da morte.

No dia em que você estiver verdadeiramente morto, já não terá medo da vida.

Sei o que é a sabedoria. É o contrário do medo.

(André Comte-Sponville – Do corpo)

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O que é decisivo, em primeiro lugar, é manter a hipótese histórica de um mundo livre da lei do lucro e do interesse privado. Enquanto estivermos sujeitos, na ordem das representações intelectuais, à convicção de que não podemos acabar com isso, que essa é a lei do mundo, nenhuma política de emancipação será possível. É isso que propus chamar de hipótese comunista. Na realidade, ela é amplamente negativa, porque é mais seguro e mais importante dizer que o mundo tal como ele é não é necessário do que dizer “no vazio” que outro mundo é possível. É uma questão de lógica modal: naquela que se impõe politicamente, vamos da não necessidade à possibilidade. Simplesmente porque, se admitimos a necessidade da economia capitalista desenfreada e da política parlamentar que a sustenta, simplesmente não podemos ver, nessa situação, outras possibilidades.

Em segundo lugar, é preciso tentar manter as palavras de nossa linguagem, apesar de não ousarmos mais pronunciá-las, essas palavras que ainda eram de todo mundo em 1968. Há quem diga: “O mundo mudou, vocês não podem mais usá-las, vocês sabem muito bem que era uma linguagem de ilusão e terror”. Como não! Nós podemos! Nós devemos! O problema continua, portanto devemos poder usar essas palavras. Compete a nós criticá-las, dar a elas um novo sentido. Devemos poder dizer ainda “povo”, “operário”, “fim da propriedade privada” etc., sem sermos considerados antiquados aos nossos próprios olhos. Devemos discutir essas palavras em nosso próprio campo. É preciso acabar com o terrorismo linguístico que nos entrega aos inimigos. Abdicar da linguagem, aceitar o terror que nos proíbe intimamente de pronunciar as palavras que não se encaixam na conveniência dominante é uma opressão intolerável.

Enfim, devemos saber que toda política é organizada e a questão talvez mais difícil a resolver pelas experimentações multiformes que começaram em 1968 é saber de que tipo de organização precisamos. Porque o dispositivo clássico do partido, que se apoia em correspondentes sociais e cujos “combates” mais importantes são, na verdade, os combates eleitorais, é uma doutrina que já deu o que podia dar. Está gasta, não funciona mais, apesar das grandes coisas que pôde oferecer, ou acompanhar, entre 1900 e 1960.

O tratamento de nossa fidelidade a Maio de 1968 ocorre em dois níveis. No campo da ideologia e da história, convém fazermos nosso próprio balanço do século XX, de modo a reformular a hipótese da emancipação de acordo com as condições de nossa época, após o fracasso dos Estados socialistas. Por outro lado, sabemos que estão ocorrendo experiências locais, batalhas políticas, com base nas quais novas figuras de organização estão sendo criadas.

Essa combinação de trabalho ideológico e histórico complexo com dados teóricos e práticas envolvendo as novas formas de organização política define nossa época. Época que eu denominaria sem nenhuma dificuldade de a época da reformulação da hipótese comunista. Qual é então a virtude mais importante para nós? Vocês sabem que os revolucionários de 1792-1794 utilizavam a palavra “virtude”. Saint-Just perguntava, pergunta capital: “Que querem os que não querem nem a virtude nem o terror?”. E respondia: “Eles querem a corrupção”. E é exatamente isso que o mundo exige de nós hoje: aceitar a corrupção generalizada dos espíritos, sob o jugo da mercadoria e do dinheiro. Contra isso, a principal virtude política hoje é a coragem. Coragem não apenas diante da polícia – e isso acontecerá, sem dúvida nenhuma –, mas a coragem de defender e praticar nossas ideias, nossos princípios e nossas palavras, afirmar o que pensamos, o que queremos, o que fazemos.

Em uma frase: devemos ter a coragem de ter uma ideia. Uma grande ideia. Devemos ter convicção de que ter uma grande ideia não é nem ridículo nem criminoso. O mundo do capitalismo generalizado e arrogante em que vivemos nos leva de volta aos anos 1840, ao capitalismo nascente, cujo imperativo, formulado por Guizot, é: “Enriquecei-vos!”. O que traduzimos por: “Vivam sem ideia”. Devemos dizer que não se vive sem ideia. Devemos dizer: “Tenham a coragem de sustentar a ideia, que só pode ser a ideia comunista, em seu sentido genérico”. É por isso que continuamos contemporâneos de Maio de 1968. À sua maneira, ele declarou que a vida sem ideia é insuportável. Desde então, uma longa, uma terrível resignação se estabeleceu. Hoje, pessoas demais acreditam que viver para elas mesmas, para seus próprios interesses, é inelutável. Devemos ter a coragem de nos distinguir dessas pessoas. Como em 1968, rejeitaremos o imperativo: “Viva sem ideia”. O filósofo que sou está dizendo a vocês uma coisa que vem sendo repetida desde Platão, uma coisa muito simples. Ele diz que é preciso viver com uma ideia e que, com essa convicção, começa o que merece ser chamado de a verdadeira política.

(Alain Badiou – Maio de 1968 revisitado)

domingo, 14 de julho de 2019

Permanece em Guevara o que denominei figura do leitor. Aquele que está isolado, o sedentário em meio à marcha da história, contraposto ao político. O leitor como aquele que persevera, tranquilo, no deciframento dos signos. Aquele que constrói o sentido no isolamento e na solidão. Fora de qualquer contexto, em meio a qualquer situação, por força da própria determinação. Intransigente, pedagogo de si mesmo e de todos, nunca perde a convicção absoluta da verdade que decifrou. Uma figura extrema do intelectual como representante puro da construção do sentido (ou, em todo caso, de certa maneira de construir o sentido).

E no fim de Guevara as duas figuras voltam a unir-se, porque estão juntas desde o início. Há uma cena que funciona quase como uma alegoria: antes de ser assassinado, Guevara passa a noite anterior na escolinha de La Higuera. A única que assume uma atitude caridosa com ele é a professora do lugar, Julia Cortés, que lhe leva um prato do guisado que sua mãe está preparando. Quando entra, encontra Che jogado no chão da sala de aula, ferido. Então  e isso é a última coisa dita por Guevara, suas últimas palavras  Guevara mostra à professora uma frase escrita na lousa e lhe diz que a frase não está correta, que tem um erro. Com sua ênfase na perfeição, ele lhe diz: "Falta o acento". Faz essa pequena recomendação à professora. A pedagogia sempre, até o último momento. 

A frase (escrita na lousa da escolinha de La Higuera) é: "Yo sé leer". Que a frase seja essa, que no fim de sua vida a última coisa que ele anote seja uma frase que tem a ver com a leitura, é como um oráculo, uma cristalização quase perfeita.

(Ricardo Piglia - O último leitor)

sábado, 13 de julho de 2019

O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo.

(Antonio Candido - Entrevista para o jornal Brasil de Fato)

sábado, 6 de julho de 2019

"Eu tinha o voo, mas cortaram minhas asas. Perdi." Assim explicava seu silêncio. Jamais esclareceu quem havia cortado suas asas, talvez por pressentir que haviam sido cortadas sobretudo por ele mesmo.

(Eric Nepomuceno sobre Juan Rulfo)

sábado, 29 de junho de 2019

À noite, ele e Estela caminhavam pelas ruas escuras, e Borges recitava, em italiano, as frases de Beatriz para Virgílio, implorando-lhe que acompanhe Dante em sua viagem pelo Inferno.

Ó alma generosa mantuana, 
De quem a fama ainda no mundo dura
E durará quanto a memória humana,

O amigo meu, mas não de sua ventura,
Tão na deserta encosta está impedido...

Estela lembrou os verso e contou-me que Borges fizera troça da adulação astuciosa que Beatriz usa para obter o que quer. E acrescentou: "Depois ele se virou para mim, embora mal pudesse me adivinhar sob a iluminação nevoenta da rua, e perguntou se me casaria com ele".

Meio de brincadeira, meio a sério, ela lhe respondeu que poderia fazê-lo. "Mas, Georgie, não esqueça que sou uma discípula de Bernard Shaw. Não podemos nos casar sem antes irmos para a cama." Para mim, à mesa de jantar, ela acrescentou: "Eu sabia que ele jamais ousaria".

(Alberto Manguel – No bosque do espelho / Borges é Jorge Luis Borges. Estela é Estela Canto. Ele dedicou a ela um de seus melhores contos, O Aleph, mas talvez tenha se arrependido) 

sábado, 22 de junho de 2019

Apaixonava-se, sem dúvida, e era um amante tenaz, monopolizador, e lhes propunha casamento. Mas, assim que aceitavam, recuava, aterrorizado por ter chegado tão longe. 

(Mario Vargas Llosa sobre Franz Kafka)

quinta-feira, 20 de junho de 2019

A vida é o vento querendo apagar uma lamparina.

(João Guimarães Rosa - Primeiras estórias)

sábado, 15 de junho de 2019

A sociedade do espetáculo governa com uma arma antiquíssima, Hobbes reconheceu há muito tempo que, para a dominação efetiva, "a Paixão a ser examinada é o Medo". Para Hobbes, é o medo que une e assegura a ordem social, e ainda hoje o medo é o mecanismo principal de controle que enche a sociedade do espetáculo. Embora o espetáculo pareça funcional por meio do desejo e do prazer (o desejo de mercadorias e o prazer do consumo), ele realmente funciona pela comunicação do medo - ou antes, o espetáculo cria formas de desejo e prazer intimamente casadas ao medo. No idioma dos primórdios da filosofia européia, a comunicação do medo era chamada de superstição. E de fato a política do medo sempre foi espalhada por uma espécie de superstição. O que mudou foram as formas e os mecanismos das superstições que comunicam o medo.


(Michael Hardt e Antonio Negri - Império)