sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

 

AS SONÂMBULAS

 

Na cidade em que nasci viviam uma mulher e sua filha, que andavam durante o sono.

 

Certa noite, enquanto o silêncio envolvia o mundo, a mulher e sua filha, caminhando adormecidas, encontraram-se em seu jardim encoberto de sereno.

 

E a mãe falou: “Até que enfim, minha inimiga! Você que destruiu minha juventude – que construiu sua vida sobre as ruínas da minha. Tenho vontade de matá-la!”.

 

E a filha falou: “Oh, mulher odiosa, egoísta e velha! Que me impede de deixar meu lado mais livre vir à tona! Que gostaria que minha vida fosse um eco de sua vida opaca! Como eu queria que estivesse morta!”.

 

Nesse momento o galo cantou, e ambas acordaram. A mãe perguntou gentilmente: “É você, minha cara?”. E a filha respondeu gentilmente: “Sim, querida”.

 

(Khalil Gibran – O louco)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

 

A realidade de outra pessoa não está no que ela revela para você, mas no que não pode revelar.

 

Portanto, se quiser entendê-la, escute não o que ela diz, mas sim o que ela não diz.

 

(Khalil Gibran – Areia e espuma)

sábado, 5 de novembro de 2022

 

Ora, em tempos calmos, nadar no mar aberto é tão fácil para um nadador experiente quanto andar numa carruagem em terra. Mas a terrível solidão é insuportável. A intensa concentração do eu no meio de tal imensidão impiedosa, meu Deus, quem pode exprimir isso? Observe os marinheiros como se banham na calmaria em pleno oceano – observe como ficam perto do navio, nadando apenas ao longo do costado.

 

(Herman Melville – Moby Dick)

domingo, 16 de outubro de 2022

A enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial? O início da marcha para o mal, para a voluptuosidade e para morte dava-se, sem dúvida, no lugar onde, provocada pelo prurido de uma infiltração desconhecida, realizava-se aquela primeira condensação do espírito, mescla de prazer e de repulsa, que constituía a fase mais primitiva do substancial, a transição do imaterial ao material. Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea, a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física. A vida chegava a ser apenas o próximo passo no caminho aventuroso do espírito que se tornara impudico, o cálido reflexo do pudor da matéria que fora despertada à sensibilidade e se mostrara disposta a corresponder ao apelo... 

 (Thomas Mann – A montanha mágica)