terça-feira, 23 de novembro de 2021

PSEUDÔNIMO. Sonho com um mundo em que os escritores sejam obrigados por lei a guardar secreta sua identidade e usar pseudônimos. Três vantagens: limitação radical da grafomania; diminuição da agressividade na vida literária; desaparecimento da interpretação biográfica de uma obra. 

(Milan Kundera – A arte do romance)

domingo, 10 de outubro de 2021

Não gosto do Brasil; é mais honesto dizer. Eu gosto é da brasilidade, essa comunidade de sentidos, afetos, sonoridades, rasuras, contradições, naufrágios, ilhas fugidias, identidades inviáveis, subversões cotidianas, voo da arara e picada de maribondo, sarava e samba. Coisas que o Brasil, o Estado colonial brasileiro delimitado em marcos territoriais, a burocracia, a república, assim como a monarquia, odeiam. O Brasil é um empreendimento de ódio. A brasilidade é uma reação vital, inovadora, transgressora, contra a mortandade como signo do Brasil.

 

(Luiz Antonio Simas  Arruaças)

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Minha melhor lembrança, em matéria de canção, e aliás uma das mais fortes emoções estéticas da minha vida, eu senti quando tinha uns vinte anos, no banheiro de um camping, não sei mais em que lugar de Portugal: eu estava no banheiro e, de repente, no meio daquele cheiro de urina e água sanitária, uma faxineira (só a vi ao sair: ela lavava o chão, vestida de preto, sem idade, as pernas incrivelmente peludas...) pôs-se a cantar: lá estava o fado eterno, o sofrimento eterno, a beleza eterna. Sem ódio, sem raiva, e também sem consolos, justificações, glorificações: a vida como ela é, atroz e preciosa, dilacerante e sublime, desesperadora e desesperada... A vida difícil, tão difícil. O destino, se você quiser (sabe, “fado” vem de “factum”), mas sem providência: as coisas tais como são, a vida tal como passa... O real, simplesmente. Sim, essa canção exprimia no fundo tudo que eu gostava, tudo de que gosto: a coragem em vez da raiva, a doçura em vez da violência, a misericórdia, em vez do ódio...

 

(André Comte-Sponville – O amor, a solidão)

domingo, 22 de agosto de 2021

Compreender com Descartes o ego pensante como fundamento de tudo, estar assim só em face do universo, é uma atitude que Hegel, a justo título, julgou heroica.


Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, isso não exige menos força.


(Milan Kundera – A arte do romance)

sábado, 31 de julho de 2021

De vez em quando eu ensaiava uma metáfora um tanto ousada, mas via que ninguém a aceitaria se viesse de mim (sou um reles contemporâneo), e assim a atribuía a algum remoto persa ou nórdico. Aí meus amigos diziam que ela era um primor; e eu nunca lhes contava, claro, que eu a inventara, pois gostava da metáfora. Afinal de contas, os persas ou nórdicos podem ter inventado essa metáfora, ou outras tanto melhores.

 

(Jorge Luis Borges – Esse ofício do verso)