segunda-feira, 18 de junho de 2018

Também dancei em roda. Isso foi em 1948, os comunistas acabavam de triunfar em meu país, os ministros socialistas e democrata-cristãos tinham se refugiado no estrangeiro, e eu segurava pela mão ou pelos ombros outros estudantes comunistas, nós dávamos dois passos no lugar, um passo para a frente e levantávamos a perna direita de um lado, depois a perna esquerda do outro, e fazíamos isso quase todos os meses, porque tínhamos sempre alguma coisa para celebrar, um aniversário ou um acontecimento qualquer, as velhas injustiças foram reparadas, novas injustiças foram cometidas, as fábricas foram nacionalizadas, milhares de pessoas foram presas, os tratamentos médicos eram gratuitos, os donos de tabacaria tiveram seus negócios confiscados, os velhos operários iam pela primeira vez passar as férias nas villasdesapropriadas e nós tínhamos no rosto o sorriso da felicidade. Depois, um dia, eu disse alguma coisa que não devia dizer, fui expulso do partido e tive que sair da roda.

Foi então que compreendi a significação mágica do círculo. Quando nos afastamos da fila, ainda podemos voltar a ela. A fila é uma formação aberta. Mas o círculo torna a se fechar e nós o deixamos sem poder retornar. Não é por acaso que os planetas se movem em círculo e que a pedra que se desprende de um deles afasta-se inexoravelmente, levada pela força centrífuga. Semelhante ao meteorito arrancado de um planeta, eu saí do círculo e, até hoje, não parei de cair. Há pessoas a quem é dado morrer no turbilhão e existem outras que se arrebentam no fim da queda. E estes outros (entre os quais estou) guardam sempre consigo uma tímida nostalgia da roda perdida, porque somos todos habitantes de um universo onde todas as coisas giram em círculo.

Era um aniversário qualquer, e mais uma vez havia nas ruas de Praga rodas de jovens que dançavam. Eu vagava por entre eles, chegava bem perto deles, mas não me era permitido entrar em nenhuma de suas rodas. Era junho de 1950 e Milada Horakova tinha sido enforcada na véspera. Ela era deputada do partido socialista e o tribunal comunista a tinha acusado de intrigas hostis ao Estado. Zavis Kalandra, surrealista tcheco, amigo de André Breton e de Paul Éluard, tinha sido enforcado ao mesmo tempo que ela. E jovens tchecos dançavam, sabendo que na véspera, na mesma cidade, uma mulher e um surrealista tinham ficado balançando numa corda, e dançavam com mais frenesi ainda porque sua dança era a manifestação de sua inocência, que contrastava, com brilho, com a escuridão culpada dos dois enforcados, traidores do povo e de sua esperança.

André Breton não acreditava que Kalandra tivesse traído o povo e sua esperança e, em Paris, chamara Éluard (numa carta aberta datada de 13 de junho de 1950) para protestar contra a acusação insensata e tentar salvar o velho amigo. Mas Éluard estava muito ocupado dançando numa gigantesca roda entre Paris, Moscou, Praga, Varsóvia, Sófia e Grécia, entre todos os países socialistas e todos os partidos comunistas do mundo, e em todos os lugares recitava seus belos versos sobre a alegria e a fraternidade. Depois de ler a carta de Breton, ele dera dois passos no lugar, depois um passo para a frente, balançara a cabeça negativamente, recusando-se a defender um traidor do povo (na revista Action de 19 de junho de 1950), e pusera-se a recitar com voz metálica:

Vamos alimentar a inocência
Com a força que por muito tempo
Nos faltou
Nunca mais ficaremos sós.

E eu vagava pelas ruas de Praga, em volta de mim giravam as rodas de tchecos que riam dançando, e eu sabia que não estava do lado deles, mas do lado de Kalandra, que também saíra da trajetória circular e caíra, caíra, para terminar sua queda num caixão de condenado, mas, mesmo não estando do lado deles, eu os olhava dançar com inveja e nostalgia, não podia tirar os olhos deles. E nesse momento enxerguei-o bem na minha frente!

Ele os segurava pelos ombros, cantava com eles duas ou três notas bem simples, levantava a perna esquerda de um lado, depois a perna direita do outro. Sim, era ele, o filho querido de Praga, Éluard! E de repente aqueles que dançavam com ele calaram-se, continuaram a mover-se num silêncio absoluto, enquanto ele entoava um de seus poemas no ritmo das batidas das solas de seus sapatos:

Fugiremos do descanso, fugiremos do sono,
Tomaremos de assalto a madrugada e a primavera
E prepararemos dias e estações
Na medida de nossos sonhos.

Em seguida, bruscamente, todos recomeçaram a cantar aquelas três ou quatro notas bem simples e aceleraram o ritmo de sua dança. Fugiam do descanso e do sono, tomavam o tempo de assalto e alimentavam sua inocência. Todos sorriam, e Éluard inclinou-se para uma moça que segurava pelos ombros: "O homem possuído pela paz tem sempre um sorriso".

E a moça começou a rir, batendo mais forte com o pé no asfalto, de modo que subiu a alguns centímetros do solo, levando os outros consigo para cima, e no instante seguinte nenhum deles tocava mais o chão, davam dois passos no lugar e um passo para a frente, sem tocar o chão, é, eles voavam sobre a Praça São Venceslau, sua roda dançante parecia uma grande coroa que alçava vôo, e eu corria embaixo, na terra, erguendo os olhos para vê-los, e eles estavam cada vez mais longe, voavam levantando a perna esquerda de um lado, depois a perna direita do outro, e embaixo deles estava Praga com seus cafés cheios de poetas e suas prisões cheias de traidores do povo, e no crematório estavam incinerando uma deputada socialista e um escritor surrealista, a fumaça subia para o céu como um feliz presságio, e eu ouvia a voz metálica de Éluard: "O amor está trabalhando, ele é incansável".

Eu corria atrás dessa voz pelas ruas para não perder de vista aquela esplêndida coroa de corpos planando sobre a cidade, e sabia, com angústia no coração, que eles voavam como os pássaros e que eu caía como pedra, que eles tinham asas e que eu nunca mais as teria.

(Milan Kundera – O livro do riso e do esquecimento)

domingo, 3 de junho de 2018

A tortura é própria do homem. O combate contra a tortura também. A guerra é própria do homem. O combate pela paz e pela justiça também. Miséria do homem: somente os humanos podem ser desumanos. Grandeza do homem: somente eles podem – e devem – tornar-se humanos. Anti-humanismo teórico: o homem não é mais que um animal entre outros. Humanismo prático: cabe a nós fazer dele outra coisa. “Let us make man”, dizia Hobbes. “Fazer bem o homem”, dizia Montaigne. Esse humanismo não é uma religião, é uma moral. O homem não é nosso Deus; ele é nossa tarefa.

(André Comte-Sponville – A vida humana)

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A liberdade apenas para os sequazes do governo, apenas para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. A liberdade é sempre unicamente liberdade para quem a pensa de modo diferente. Não por fanatismo de ‘justiça’, mas porque tudo o que é educativo, salutar e purificador deriva da liberdade política, depende dessa convicção, e perde toda eficácia, quando a liberdade torna-se privilégio.

(Rosa Luxemburgo - A Revolução Russa)

sábado, 26 de maio de 2018

RELATÓRIO DE MAIO

Naquele maio
decidiu-se a opção
entre violão e violência
voaram paralelepípedos
exigindo a universidade crítica
e a paz das sandálias
fugindo ao palácio das negociações
martirizou os pés
na vala de encanamentos cortados
naquele maio
o fogo o fogo o fogo o fogo
vinha no vento do telex
soprado de muito longe
tornado muito perto
o delegado saiu prendendo
cortando cabelo
mandando dormir mais cedo
naquele maio
a Bolsa fechou por excesso de instruções
que mandavam fazer o oposto do contrário
ou
o contrário do contrário do contrário
naquele inverno
o grupo Lire le Capital
reformulava a dialética anti-Hegel
e o estruturalismo continuava na onda
passando à frente de Bonnie & Clyde
sem desbancar McLuhan, Chacrinha e o
teatro do absurdo institucionalizado
Qorpo Santo é quem tinha razão
naquele maio
o túnel fechou cansado de servir
a eternos carros e personas
que nunca lhe agradeceram
a abertura para o Sul e para o Norte
naquele maio
os mendigos dormiam abraçados
no gelo da rua
não por amor: para cada um
tirar o quentinho do outro
naquele maio
os municípios eram divididos
em dois pelotões: os autônomos
até certo ponto
e os tutelados
oh tão melhor ser tutelado: vinha um homem
fardado por fora ou por dentro
dizia o que era lícito fazer
dispensando os cidadãos da difícil escolha
entre o azul e o amarelo
o bom e o mau
o nariz e a gaivota
a laranja e a banana
o X e o Y
naquele maio
o Ibope consolava o Governo
meu querido
saiba que tem havido outros piores
mas não pergunte mais que eu não respondo
naquele maio
as manhãs eram lindíssimas, as tardes
pingavam chuva fina
o mar entristecia
a luz era cortada de repente
como prefixo da morte
e mesmo assim na treva uma ave tonta
riscava o céu naquele maio

(Carlos Drummond de Andrade, 26.05.1968)

quinta-feira, 24 de maio de 2018

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa da libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferir atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.

(Walter Benjamin – Sobre o conceito da história)

sexta-feira, 18 de maio de 2018

O menino teria desaparecido nesse quadro se seus olhos incomensuravelmente tristes não dominassem essa paisagem feita sob medida para eles.

Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido.

(Walter Benjamin - Pequena História da Fotografia)



terça-feira, 15 de maio de 2018

A filosofia de Hegel representa uma última trincheira, um esforço de última hora para redimir o mundo pela Razão, contrapondo severamente sua face diante de todo mero intuicionismo; mas o que em Hegel é o princípio, Ideia ou Razão, ao exibir seu majestoso progresso ao longo da história, tornou-se em Schopenhauer a Vontade cega, voraz — a ânsia implacável que está no âmago de todos os fenômenos. O intelecto para Schopenhauer é apenas um servo bruto e vacilante dessa força implacável, falseado por ela, uma faculdade inerentemente deformadora que acredita pateticamente apresentar as coisas como realmente são. O que para Marx e Engels é uma condição social específica, na qual as idéias obscurecem a verdadeira natureza das coisas, é generalizada em Schopenhauer para a estrutura da mente como tal. E, de um ponto de vista marxista, nada poderia ser mais ideológico que essa visão de que todo pensamento é ideológico. É como se Schopenhauer em O mundo como vontade e representação (1819) fizesse exatamente o que descreve fazer o intelecto: oferece como verdade objetiva a respeito da realidade o que é a perspectiva partidária de uma sociedade cada vez mais governada pelo interesse e pelo apetite. A cobiça, a maldade e a agressividade do mercado burguês são agora simplesmente como a humanidade é, mistificada por uma Vontade metafísica.


(Terry Eagleton - Ideologia)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Contrariamente ao que as aparências de atraso fazem supor, a causa última da absurda formação social brasileira está nos avanços do capital e na ordem planetária criada por eles, de cuja atualidade as condutas disparatadas de nossa classe dominante são parte tão legítima e expressiva quanto o decoro vitoriano.

(Roberto Schwarz - Um mestre na periferia do capitalismo)

domingo, 13 de maio de 2018

Quando já estavam muito velhos, o célebre pintor Salvador Dali e sua mulher Gala domesticaram um coelho que depois viveu com eles sem deixá-los um instante: gostavam muito dele. Um dia, quando deveriam partir para um longa viagem, discutiram até tarde da noite o que iriam fazer com o coelho. Era difícil levá-lo, mas não menos difícil confiá-lo a alguém, porque o coelho tinha medo dos homens. No dia seguinte Gala preparou o almoço e Dali deleitou-se, até o momento em que compreendeu que comia um ensopado de coelho. Levantou-se da mesa e correu para o banheiro para vomitar na pia seu pequeno animal querido, fiel companheiro de seus dias de velhice. Gala, ao contrário, estava contente que seu amado tivesse penetrado em suas entranhas, tivesse-as acariciado lentamente, tornando-se o corpo de sua dona. Ela não conhecia relação mais absoluta de amor do que a ingestão do ser amado. Comparado a essa fusão de corpos, o ato do amor físico parecia-lhe um prurido irrisório. 


(Milan Kundera - A imortalidade)

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Ah, os queridos anos 1960. Eu gostava de dizer, então, cinicamente: o regime político ideal é uma ditadura em decomposição; o aparelho opressivo funciona de maneira cada vez mais defeituosa, mas está sempre ali para estimular o espírito crítico e zombeteiro. No verão de 1967, irritados com o congresso corajoso da União dos Escritores e achando que o atrevimento tinha ido longe demais, os chefes do Estado tentaram endurecer sua política. Mas o espírito crítico havia contaminado até o comitê central que, em janeiro de 1968, decidiu que o presidente seria um desconhecido: Alexandre Dubcek. A Primavera de Praga começou: hilário, o país recusou o estilo de vida imposto pela Rússia; as fronteiras do estado foram abertas e todas as organizações sociais (sindicatos, federações, associações), originalmente destinadas a transmitir ao povo a vontade do partido, tornaram-se independentes e se transformaram em instrumentos inesperados de uma democracia inesperada. Nasceu um sistema (sem nenhum projeto preestabelecido, quase por acaso) que foi verdadeiramente sem precedentes: uma economia 100% nacionalizada, uma agricultura nas mãos das cooperativas, nada de pessoas muito ricas, nada de pessoas muito pobres, o ensino e a medicina gratuitos, mas também: o fim do poder da polícia secreta, o fim das perseguições políticas, a liberdade de escrever sem censura e, a partir daí, o desabrochar da literatura, da arte, do pensamento, das revistas. Eu ignoro quais eram as perspectivas de futuro desse sistema; na situação geopolítica de então, certamente nulas; mas numa outra situação geopolítica? Quem pode saber... Em todo caso, esse segundo durante o qual esse sistema existiu, esse segundo foi soberbo. 

(Milan Kundera - Um encontro) 

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Maio de 68 de Paris foi uma explosão inesperada. A Primavera de Praga, o coroamento de um longo processo enraizado no choque do Terror stalinista dos primeiros anos depois de 1948.

Maio de Paris, sustentado a princípio por iniciativa dos jovens, era impregnado de lirismo revolucionário. A Primavera de Praga era inspirada pelo ceticismo pós-revolucionário dos adultos.

Maio de Paris era uma contestação alegre da cultura europeia vista como desinteressante, oficial, esclerosada. A Primavera de Praga era a exaltação dessa mesma cultura abafada durante muito tempo sob a idiotice ideológica, a defesa tanto do cristianismo quanto da incredulidade libertina e, claro, da arte moderna (explico bem: moderna, não pós-moderna).

Maio de Paris propagava seu internacionalismo. A Primavera de Praga queria devolver a uma pequena nação sua originalidade e sua independência.

Por um “acaso maravilhoso”, essas duas Primaveras, assincrônicas, cada uma originada num tempo histórico diferente, se encontraram sobre a “mesa de dissecação” do mesmo ano.

(Milan Kundera – Um encontro)

domingo, 6 de maio de 2018

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: “Para onde cavalga, senhor?” “Não sei direito”, eu disse, “só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo.” “Conheces então o seu objetivo?”, perguntou. “Sim”, respondi, “eu já disse: ‘fora daqui’, é esse o meu objetivo.”

(Franz Kafka – A partida)