domingo, 30 de agosto de 2020

 

UM MÚSCULO SECRETO

 

No meio-dia da memória, um meio-dia do exílio. Eu estava escrevendo, ou lendo, ou me aborrecendo em minha casa no litoral de Barcelona, quando o telefone tocou e o telefone me trouxe, cheio de assombro, a voz de Fico.

 

Fazia mais de dois anos que Fico estava preso, fora solto no dia anterior. O avião o trouxera da cela de Buenos Aires para o aeroporto de Londres. Do aeroporto ele me telefonava pedindo que fosse vê-lo, venha no primeiro avião, tenho muita coisa para contar, tanta coisa para falar, mas uma coisa eu quero dizer já, quero que você saiba:

 

— Não me arrependo de nada.

 

Naquela mesma noite nos encontramos em Londres.

 

No dia seguinte, acompanhei-o ao dentista. Não tinha remédio. Os choques elétricos nas câmaras de tortura afrouxaram seus dentes de cima, e podia dar aqueles dentes por perdidos.

 

Fico Vogelius era o empresário que financiara a revista Crísis, e não havia posto somente dinheiro, mas a alma e a vida naquela aventura, e me dera plena liberdade para fazer a revista do jeito que eu quisesse. Enquanto durou, três anos e pouco, quarenta números, Crísis soube ser um teimoso ato de fé na palavra solidária e criativa, aquela que não é nem finge ser neutra, a voz humana que não é eco nem soa só por soar.

 

Por causa desse delito, pelo imperdoável delito de Crísis, a ditadura militar argentina seqüestrou Fico, e o encarcerou e torturou; e ele salvara a vida por um fio, graças ao fato de ter conseguido gritar o próprio nome enquanto era seqüestrado.

 

A revista havia caído sem se curvar, e nós estávamos orgulhosos dela. Fico tinha uma garrafa de sei lá qual vinho francês antigo e bem-amado. Com aquele vinho brindamos, em Londres, à saúde do passado, que continuava sendo um companheiro digno de confiança.

 

Depois, alguns anos depois, acabou-se a ditadura militar. E em 1985, Fico decidiu que Crísis devia ressuscitar. E estava cuidando disso, outra vez disposto a queimar tempo e dinheiro, quando ficou sabendo que tinha um câncer.

 

Consultou vários médicos, em vários países. Uns lhe davam vida até outubro, outros até novembro. De novembro não passa, sentenciavam todos. Ele estava cadavérico, tremendo de operação a operação; mas um brilho de desafio acendia seus olhos.

 

Crísis reapareceu em abril de 86. E no dia seguinte ao renascimento de Crísis, meio ano depois de todos os prognósticos, Fico deixou-se morrer.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)

sábado, 15 de agosto de 2020

O desejo de ordem quer transformar o mundo humano num reino inorgânico em que tudo acontece, tudo funciona, tudo é submetido a uma vontade impessoal. O desejo de ordem é ao mesmo tempo desejo de morte, porque a vida é perpétua violação da ordem. Ou, inversamente, o desejo de ordem é o pretexto virtuoso pelo qual a raiva do homem pelo homem justifica suas perversidades.

 

(Milan Kundera – A valsa dos adeuses)

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Tudo foi crescendo de forma tão pujante que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma forma na trama que estávamos enredados. Naquela terra mesmo, entranhada na secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida.

 

(Itamar Vieira Junior – Torto arado)

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A gratidão (charis) é essa alegria da memória, esse amor do passado – não o sofrimento do que não é mais, nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna a idéia da morte indiferente, como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará, não poderia tomar de nós: são bens imortais, diz Epicuro, não porque não morremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia e definitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nos dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.

 

(André Comte-Sponville – Pequeno tratado das grandes virtudes)

domingo, 9 de agosto de 2020

- Tenho a impressão de que você, porque vai matar-se, me quer esmagar com sua superioridade...

 

- Fico espantadíssimo vendo que os homens continuam a viver, disse Kirilov, que novamente não escutara a observação de Pior Stepanovitch.

 

- Hum! admitamos, é uma idéia, mas...

 

- Macaco! és muito solícito em concordar, a fim de te apoderares de mim. Cala-te! Não compreendes nada. Se Deus não existe, eu sou Deus.

 

- É precisamente isso que nunca pude compreender em você: por que é Deus?

 

- Se Deus existe, toda vontade lhe pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade.

 

- Sua própria vontade? E por que deve proclamar?

 

- Porque é a mim, doravante, que toda vontade pertence. Será possível que não haja ninguém, no planeta inteiro, que após matar a Deus, acreditando na sua própria vontade, atreva-se a proclamar essa vontade na sua forma suprema? É como um pobre que herdasse uma fortuna, e tremesse, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se muito fraco para tal façanha. Quero proclamar minha própria vontade. Mesmo que eu seja o único, hei de o fazer.

 

- Pois faça-o.

 

- Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade.

 

- Mas você não é o único. Muitas pessoas se suicidaram antes.

 

- Por razões sem importância. Mas sem nenhuma razão, simplesmente a fim de proclamar a sua vontade, eu sou o único.

 

“Não ele não se há de matar”, pensou Pior Stepanovitch. E disse:

 

- Pois fique sabendo que eu, se estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso lhe indicar a quem matar. E nesse caso, você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A gente entraria numa combinação.

 

- Matar a outrem, seria a mais baixa manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu quero a forma suprema, e hei de matar-me.

 

“Tirou isso do próprio bestunto”, resmungou irritado Pior Stepanovitch.

 

- Tenho que proclamar minha incredulidade, tornou Kirilov que continuava a caminhar dum lado para o outro. Para mim, a idéia mais elevada é a negação da existência de Deus. Toda a história da humanidade me presta testemunho. Até agora o homem não tem feito senão inventar Deus, a fim de viver sem matar-se; é essa a história do mundo até nossos dias! Só eu, pela primeira vez na história do mundo, recusei-me a inventar Deus. Saibam-no todos, de uma vez para sempre!

 

(Fiódor Dostoiévski – Os demônios)