domingo, 26 de janeiro de 2020


MARIA DE LA CRUZ

1961. Havana.

Pouco depois da invasão de Playa Girón, o povo reúne-se na praça. Fidel anuncia que os prisioneiros serão trocados por remédios para crianças. Depois entrega diplomas a quarenta mil camponeses alfabetizados. Uma velha insiste em subir na tribuna, e tanto insiste que enfim sobe. Em vão move as mãos no ar, buscando o altíssimo microfone, até que Fidel o abaixa:

– Eu queria conhecê-lo, Fidel. Queria dizer-lhe...

 – Cuidado, vou ficar vermelho...

Mas a velha, mil rugas, meia dúzia de ossinhos, criva-o de elogios e gratidões. Ela aprendeu a ler e a escrever aos cento e seis anos de idade. Chamase Maria de la Cruz, por ter nascido no mesmo dia da invenção da Santa Cruz, com o sobrenome Semanat, porque Semanat se chamava a plantação de cana onde ela nasceu escrava, filha de escravos, neta de escravos. Naquele tempo os amos mandavam ao cepo os negros que queriam letras, explica Maria de la Cruz, porque os negros eram máquinas que funcionavam ao toque do sino e ao ritmo dos açoites, e por isso ela tinha demorado tanto em aprender.

Maria de la Cruz apodera-se da tribuna. Depois de falar, canta. Depois de cantar, dança. Faz mais de um século que desandou a dançar Maria de la Cruz. Dançando saiu do ventre da mãe e dançando atravessou a dor e o horror até chegar aqui, que era onde devia chegar, portanto agora e não há quem a detenha.

(Eduardo Galeano – Mulheres)

terça-feira, 21 de janeiro de 2020


SACRÍLEGAS

No ano de 1901, Elisa Sánchez e Marcela Gracia contraíram matrimônio na igreja de São Jorge, na cidade galega de A Corunha.

Elisa e Marcela se amavam às escondidas. Para normalizar a situação, com boda, sacerdote, certidão e foto, foi preciso inventar um marido: Elisa se transformou em Mario, vestiu roupa de cavalheiro, cortou os cabelos e falou com outra voz.

Depois, quando ficaram sabendo, os jornais da Espanha inteira puseram a boca no mundo diante daquele escândalo asquerosíssimo, essa imoralidade desavergonhada, e aproveitaram aquela tão lamentável ocasião para vender como nunca , enquanto a Igreja, enganada em sua boa-fé, denunciava para a polícia o sacrilégio cometido.

E desatou-se a caçada.

Elisa e Marcela fugiram para Portugal.

Caíram presas na cidade do Porto.

Quando escaparam da cadeia, trocaram de nomes e foram mar afora.

Na cidade de Buenos Aires perdeu-se a pista das fugitivas.

(Eduardo Galeano – Mulheres)

domingo, 19 de janeiro de 2020


O MUNDO ENCOLHE

Hoje é o dia das línguas maternas.

A cada duas semanas, morre um idioma.

O mundo diminui quando perde seus humanos dizeres, da mesma forma que encolhe quando perde a diversidade de suas plantas e bichos.

Em 1974, morreu Ângela Loij, uma das últimas indígenas onas da Terra do Fogo, lá no fim do mundo; e a última que falava a sua língua.

Ângela cantava sozinha, cantava para ninguém, nessa língua que ninguém mais lembrava:


Vou andando pelas pegadas

daqueles que já se foram.
Estou perdida.

Nos tempos idos, os onas adoravam vários deuses. O deus supremo se chamava Pemaulk.

Pemaulk significa palavra.


(Eduardo Galeano – Mulheres)

sábado, 18 de janeiro de 2020


A ARTE DE DESENHAR-TE

Em algum leito do golfo de Corinto, uma mulher contempla, à luz do fogo, o perfil de seu amante adormecido.

Na parede, reflete-se a sombra.

O amante, que jaz ao seu lado, irá embora. Ao amanhecer irá para a guerra, irá para a morte. E também a sombra, sua companheira de viagem, irá com ele e com ele morrerá.

É noite ainda. A mulher recolhe um tição entre as brasas e desenha, na parede, o contorno da sombra.

Esses traços não irão embora.

Não a abraçarão, e ela sabe. Mas não irão embora.

(Eduardo Galeano – Mulheres)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020


AS MULHERES DOS DEUSES

1939. São Salvador da Bahia

Ruth Landes, antropóloga norte-americana, vem ao Brasil. Quer conhecer a vida dos negros num país sem racismo. No Rio de Janeiro, é recebida pelo ministro Osvaldo Aranha. O ministro explica a ela que o governo se propõe a limpar a raça brasileira, suja de sangue negro, porque o sangue negro tem a culpa do atraso nacional.

Do Rio, Ruth viaja para a Bahia. Os negros são ampla maioria nesta cidade, onde outrora tiveram seu trono os vice-reis opulentos de açúcar e de escravos, e negro é tudo o que aqui vale a pena, da religião até a comida, passando pela música. E mesmo assim, na Bahia todo mundo acha, e os negros também, que a pele clara é prova de boa qualidade. Todo mundo, não: Ruth descobre o orgulho da negritude nas mulheres dos templos africanos.

Nesses templos são quase sempre mulheres, sacerdotisas negras, que recebem em seus corpos os deuses vindos da África. Resplandecentes e redondas como balas de canhão, oferecem aos deuses seus corpos amplos, que parecem casas onde dá prazer chegar e ficar. Nela entram os deuses, e nelas dançam. Das mãos das sacerdotisas possuídas o povo recebe ânimo e consolo; e de suas bocas escuta as vozes do destino.

As sacerdotisas negras da Bahia aceitam amantes, não maridos. O casamento dá prestígio, mas tira a liberdade e a alegria. Nenhuma se interessa em formalizar o casamento frente ao padre ou ao juiz: nenhuma quer ser esposada esposa, senhora fulano. Cabeça erguida, lânguido balançar: as sacerdotisas se movem como rainhas da Criação. Elas condenam seus homens ao incomparável tormento de sentir ciúmes dos deuses.  

(Eduardo Galeano – Mulheres)