domingo, 12 de novembro de 2023

 

Comprade Justino e sua mulher, a Zefa, já velhinhos... sentados à porta de seu ranchinho pobre, relembrando o passado.

 

ELE – Pois é, Zefa. Tava me alembrando quando a gente casô... Eu tinha muito dinheiro dos negócio... Tinha mais de mir cabeça de gado... aí veio aquela peste. Ocê lembra? Morreu todo o gado e eu fiquei numa pindaíba de dá pena... e ocê sempre ali junto comigo. Se alembra, Zefa?

 

ELA – Éééééé... craro que se alembro, uai.

 

ELE – Depois a gente começou a prantá roça, eu fui arribando de novo... cheguei a ter muita terra, né?

 

ELA – Éééé...

 

ELE – Mais despois veio a praga dos gafanhoto... ocê alembra? Perdemos tudo... fiquemo sem roça, e ocê aí... firme comigo... sempre junto. E quando eu fiquei doente, intão? Febre amarela. Icterícia... bronquite braba... fui internado, dois mês de hospitar... e ocê ali firme... sempre junto comigo...

 

ELA – É verdade...

 

ELE (num repente) – Ó Zéfa! Pensando bem... ocê dá um azar desgramado...

 

(Rolando Boldrin – Um casal saudoso)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O desejo de religião é o anseio por uma autoridade cujo “Farás” ou “Não farás” cheio de empatia serviria para nos aliviar da insegurança moral e cognitiva. O espírito livre, ao contrário, é aquele que tem coragem de renunciar a “todo desejo de certeza”, escorando-se exclusivamente em “finas cordas e possibilidades” e ainda assim dançando na beira do abismo.

 

(Terry Eagleton refletindo a partir de Friedrich Nietzche – A morte de Deus na cultura)

sábado, 9 de setembro de 2023

 

O Renascimento foi, mais do que o renascimento da arte grega, o renascimento do corpo do homem. A mulher, que havia sido banida como elemento pecaminoso de toda estatuária religiosa, reaparecia com suas formas pujantes e jovens sob a titulação defensiva desta ou daquela santa, desta ou daquela virgem. Que foram Rafael, Leonardo e os demais mestres do apogeu seiscentistas senão os redescobridores deslumbrados do corpo humano?

 

(Oswald de Andrade – O antropófago)

sábado, 26 de agosto de 2023

 

Sentimental eu fico
Quando pouso na mesa de um bar
Eu sou um lobo cansado carente
De cerveja e velhos amigos

 

Na costura da minha vida mais um ponto
No arremate do sorriso mais um nó
Aqui pra nós cantar não tá pra peixe
Tem coisa transformando a água em pó

 

E apesar de estar no bar caçando amores
Eu nego tudo e invento explicações
Amigo velho amar não me compete
Eu quero é destilar as emoções

 

Sentimental eu fico
Quando pouso na mesa de um bar
Eu sou um lobo cansado carente
De cerveja e velhos amigos

 

E os projetos todos tolos combinados
Perecerão nas margens do amanhã
Uma tontura solta na cabeça
Um olho em Deus e outro com satã

 

E quando o sol raiar desentendido
Eu vou ferir a vista no amanhã
E olharei para quem vai pro trabalho
Com os olhos feito os olhos de uma rã

 

(Renato Teixeira – Sentimental eu fico)

sábado, 19 de agosto de 2023

no escrever aquilo a que me dispus, não me confinarei nem às suas regras nem às de qualquer homem que jamais vivesse.

 

Àqueles, todavia, que preferem não remontar tão longe nestas particularidades, o melhor conselho que posso dar é pularem o restante deste capítulo, pois declaro antecipadamente tê-lo escrito apenas para os curiosos e os indiscretos.

 

(Laurence Sterne – A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy)



quinta-feira, 15 de junho de 2023

Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que, se não tivesse lido, o mundo seria mais pobre.

 

O leitor ideal possui um perverso senso de humor.

 

O leitor ideal jamais conta quantos livros tem.

 

O leitor ideal é generoso e ávido ao mesmo tempo.

 

O leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima.

 

O leitor ideal gosta de usar o dicionário.

 

O leitor ideal julga o livro pela capa.

 

Quando lê um livro de séculos atrás, o leitor ideal se sente imortal.

 

[...]

 

O leitor ideal não tem uma nacionalidade precisa.

 

[...]

 

Pinochet, que proibiu D. Quixote por pensar que incitava a desobediência civil, foi o leitor ideal desse livro.

 

[...]

 

O leitor ideal não se preocupa com anacronismos, a verdade documentada, a exatidão histórica, a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.

 

[...]

 

O leitor ideal é alguém com quem o autor gostaria de varar a noite bebendo vinho.

 

Um leitor ideal não deveria ser confundido com um leitor virtual.

 

Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.

 

A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.

 

(Alberto Manguel – Notas para uma definição do leitor ideal) 


segunda-feira, 5 de junho de 2023

 

D. Quixote de La Mancha é um livro subversivo. Contra a autoridade arbitrária dos nobres e dos ricos, contra o egoísmo e a infidelidade das pessoas do povo, contra o arrogante equívoco dos letrados e universitários. D. Quixote insiste em que o principal dever do leitor é agir no mundo com honestidade moral e intelectual, sem se deixar convencer por slogans tentadores e apelos emotivos, nem acreditar em notícias aparentemente verdadeiras sem verificá-las. Quem sabe esse seu modesto princípio possa nos tornar, a nós, leitores nesta sociedade caótica em que vivemos, mais tolerantes e menos infelizes.

 

(Alberto Manguel – Notas para uma definição do leitor ideal)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

 

Alexis de Tocqueville não teria escrito A democracia na América nem Marx escreveria O capital se se tivessem proposto tão somente a tarefa que podiam realizar. Cabe a nós, epígonos, preencher as lacunas ou indicar erros. No que se refere às tarefas históricas ou políticas, cada um responderá segundo seu temperamento ou seu humor. Os franceses continuam a celebrar Napoleão, que fez correr mais sangue que qualquer outro francês e que, no final, deixou a França menor, mais fraca, mais próxima do declínio do que a havia encontrado. Nenhum dos soberanos que pretendeu dar aos franceses a paz e a prosperidade encontrou ainda um advogado entre os historiadores, embora estes tenham sido ganhos pelo pacifismo. Tão somente os liberais, pessimistas e talvez sábios, convidam a humanidade a propor-se tão somente tarefas que possa realizar. E é por isso que eles não fazem a história e contentam-se habitualmente em comentá-la. Os marxistas pertencem a uma outra família; eles medem as tarefas com o metro dos seus sonhos e não de suas forças. Humanos, demasiadamente humanos, se, para parafrasear uma célebre afirmação de André Gide, cada um deve preferir a si mesmo aquilo que o devora – ou, por vezes, aquilo que devora seus semelhantes.

 

(Raymond Aron – De uma sagrada família a outra)

sábado, 18 de março de 2023

Lembrou-se então das heroínas dos livros que lera, e toda aquela legião lírica de mulheres adúlteras começou a cantar-lhe na memória, com vozes de irmãs que a seduziam. Tornava-se ela mesma agora parte autêntica dessas imaginações e realizava o longo devaneio da sua juventude, enquadrando-se naquele tipo de mulher apaixonada que tanto invejara. Além disso, Emma sentia uma satisfação de vingança. Já sofrera bastante! Mas agora triunfava, e o amor, por tanto tempo reprimido, jorrava livremente em alegre efervescência. Saboreava-o sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego. O dia seguinte passou-se numa nova doçura. Fizeram juramentos um ao outro. Rodolphe interrompia-a com os seus beijos; ela pedia-lhe, fixando-lhe as pálpebras semicerradas, que a chamasse mais uma vez pelo nome e lhe repetisse que a amava. 

 

(Gustave Flaubert – Madame Bovary)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

 

Durante certo tempo, o pânico de ser despedido pelo aperto de mão de seu chefe conviveu com seu medo de pessoas que se aproximavam para dizer-lhe que devia publicar mais. Quando lhe perguntavam por que não escrevia mais, Juan Rulfo costumava responder:

 

- É que morreu meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias.

 

(Enrique Vila-Matas – Bartleby e companhia)

domingo, 29 de janeiro de 2023

 

FOTOS: O ESCORPIÃO

 

Londres, estádio de Wembley, outono de 1995.

 

A seleção colombiana de futebol desafia o venerável futebol inglês em seu templo maior, e René Higuita faz uma defesa jamais vista.

 

Um atacante inglês dispara um tiro fulminante. Com o corpo na horizontal no ar, o goleiro deixa a bola passar e a devolve com os calcanhares, dobrando as pernas como um escorpião torce a cauda.

 

Vale a pena parar e olhas as fotos desse documento de identidade colombiana. Sua força de revelação não está na proeza esportiva, e sim no sorriso que atravessa a cara de Higuita, de orelha a orelha, enquanto comete seu sacrilégio imperdoável.

 

(Eduardo Galeano – Espelhos: uma história quase universal)