sábado, 26 de setembro de 2020

O AMOR

 

Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

 

- Te cortaram? Perguntou o homem.

 

- Não – disse ela – sempre foi assim.

 

Ele a examinou de perto. Coçou a cabeça. Havia ali uma chaga aberta. Disse:

Não comas mandioca, nem bananas, nem nenhuma fruta que se rasgue ao amadurecer. Eu te curarei. Deita-te na rede e descansa.

 

Ela obedeceu. Com paciência tomou a mistura de ervas e deixou que lhe aplicasse as pomadas e unguentos. Tinha que apertar os dentes para não rir quando ele dizia:

 

- Não te preocupes.

 

Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver de jejum e estendida na rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.

Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:

 

- Encontrei! Encontrei!

 

Acabava de ver um macaco curando uma macaca na copa de uma árvore.

 

- É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.

 

Quando terminou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, deitados juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tamanha sua beleza que morriam de vergonha os sóis e os deuses.

 

(Eduardo Galeano – Amar a mares)

 


domingo, 13 de setembro de 2020

O DERROTADO INVENCÍVEL

 

– Gigantes!

(Moinhos

de vento...)

– Malina

mandinga,

traça

d’espavento!

(Moinhos e moinhos

de vento...)

– Gigantes!

Seus braços

de aço

me quebram

a espinha

me tornam

farinha?

Mas brilha

Divino

o santelmo

que rege

e ilumina

meu valimento.

Doído,

moído,

caído,

perdido,

curtido,

morrido,

eu sigo,

persigo

o lunar

intento:

pela justiça no mundo,

luto, iracundo.

 

(Carlos Drummond de Andrade – As impurezas do branco)


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

 

CELEBRAÇÃO DA CORAGEM 2

 

Perguntei a ele se tinha visto algum fuzilamento. Sim, tinha visto. Chino Heras tinha visto um coronel ser fuzilado, no final de 1960, no quartel de La Cabana. A ditadura de Batista tinha muitos carrascos, coisa ruim a serviço da dor e da morte; e aquele coronel era um dos muitos, um dos piores.

 

Estávamos em meu quarto, numa roda de amigos, em um hotel de Havana. Chino contou que o coronel não tinha querido que vendassem os seus olhos, e sua última vontade não fora um cigarro: o coronel pediu que o deixassem comandar seu próprio fuzilamento.

 

O coronel gritou: Preparar! e gritou: Apontar! Quando ia gritar: Fogo!, o fuzil de um dos soldados travou. Então o coronel interrompeu a cerimônia.

 

— Calma — disse para a fila dupla de homens que deviam matá-lo. Eles estavam tão próximos que quase podia tocá-los.

 

— Calma — disse —. Não fiquem nervosos.

 

E novamente mandou preparar armas, e mandou apontar, e quando estava tudo em ordem, mandou disparar. E caiu.

 

Chino contou esta morte do coronel, e ficamos calados. Éramos vários naquele quarto, e todos nos calamos.

 

Esticada feito uma gata sobre a cama, havia uma moça de vestido vermelho. Não recordo seu nome. Recordo suas pernas. Ela tampouco disse nada.

 

Passaram-se duas ou três garrafas de rum e no fim, todo mundo foi dormir. Ela também. Antes de ir embora, da porta entreaberta, olhou para o Chino, sorriu e agradeceu:

 

— Obrigada — disse — Eu não conhecia os detalhes. Obrigada por ter me contado.

 

Depois soubemos que o coronel era pai da moça.

 

Uma morte digna é sempre uma boa história para se contar, mesmo que seja a morte digna de um filho da puta. Mas eu quis escrevê-la, e não consegui. Passou o tempo e esqueci.

 

Da moça, nunca mais ouvi falar.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

 

OUTRO MÚSCULO SECRETO

 

Nos últimos anos, a Avó estava se dando muito mal com o próprio corpo. Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la. — Ainda bem que a mente viaja sem passagem — dizia. Eu estava longe, no exílio. Em Montevidéu, a Avó sentiu que tinha chegado a hora de morrer. Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo.

 

Chegou de avião, acompanhada pela minha tia Emma. Viajou entre as nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avião atravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobre a estrada de pedras.

 

Ficou em casa um mês. Comia mingaus de bebê e roubava caramelos. No meio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu avô, que tinha morrido há quarenta anos. Às vezes tentava alguma fuga até a praia, mas suas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada.

 

No final, disse:

 

— Agora, já posso morrer.

 

Disse que não ia morrer na Espanha. Queria evitar que eu tivesse a trabalheira burocrática, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muito bem que eu odiava a burocracia.

 

E regressou a Montevidéu. Visitou a família toda, casa por casa, parente por parente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagem não tinha culpa. E então, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu.

 

Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da árvore que ela tinha escolhido.

 

Às vezes, a Avó vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e ela é um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas águas.

 

(Eduardo Galeano – O livro dos abraços)