— Meu coração está apertado de ver
tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a colheita de quem abandona a
casa por uma vida pródiga.
— A prodigalidade também existia em
nossa casa.
— Como, meu filho?
— A prodigalidade sempre existiu em
nossa mesa.
— Nossa mesa é comedida, é austera,
não existe desperdício nela, salvo nos dias de festa.
— Mas comemos sempre com apetite.
— O apetite é permitido, não agrava
nossa dignidade, desde que seja moderado.
— Mas comemos até que ele desapareça;
é assim que cada um em casa sempre se levantou da mesa.
— É para satisfazer nosso apetite que
a natureza é generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que
trabalhemos por merecê-los.
Não fosse o apetite, não teríamos
forças para buscar o alimento que torna possível a sobrevivência. O apetite é
sagrado, meu filho.
— Eu não disse o contrário, acontece
que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é
possível, mas não conseguem apaziguar a fome.
— Você diz coisas estranhas, meu
filho. Ninguém deve desesperar-se, muitas vezes é só uma questão de paciência,
não há espera sem recompensa, quantas vezes eu não contei para vocês a história
do faminto?
— Eu também tenho uma história, pai,
é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca
conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o
corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés;
sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.
— Você sempre teve aqui um teto, uma
cama arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito
afeto. Nada te faltava. Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de
famintos, que nenhuma delas agora vem a propósito, tornando muito estranho tudo
o que você fala. Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule,
não esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta
confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham
ordem em suas idéias. Palavra com palavra, meu filho.
— Toda ordem traz uma semente de
desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que
falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o
instante em que decidi o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu
poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter
partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
— E o que é que não te davam aqui
dentro?
— Queria o meu lugar na mesa da
família.
— Foi então por isso que você nos
abandonou: porque não te dávamos um lugar na mesa da família?
— Jamais os abandonei, pai; tudo o
que quis, ao deixar a casa, foi poupar-lhes o olho torpe de me verem
sobrevivendo à custa das minhas próprias vísceras.
— O pão contudo sempre esteve à mesa,
provendo igualmente a necessidade de cada boca, e nunca te foi proibido
sentar-se com a família, ao contrário, era esse o desejo de todos, que você
nunca estivesse ausente na hora de repartir o pão.
— Não falo deste alimento, participar
só da divisão deste pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade:
seu consumo só prestaria para alongar a minha fome; tivesse de sentar-me à mesa
só com esse fim, preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse
a vida.
— Do que é que você está falando?
— Não importa.
— Você blasfemava.
— Não, pai, não blasfemava, pela
primeira vez a vida eu falava como um santo.
— Você está enfermo, meu filho, uns
poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão quebrar o orgulho da tua
palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.
— Por ora não me interesso pela saúde
de que o senhor fala, existe nela uma semente de enfermidade, assim como na
minha doença existe uma poderosa semente de saúde.
— Não há proveito em atrapalhar
nossas idéias, esqueça os teus caprichos, meu filho, não afaste o teu pai da
discussão dos teus problemas.
— Não acredito na discussão dos meus
problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai,
de que uma planta nunca enxerga a outra.
— Conversar é muito importante, meu
filho, toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos
assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está
no fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja
justo.
— Admito que se pense o contrário,
mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam
sempre frutos tardios, quando colhidos.
— É egoísmo, próprio de imaturos,
pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa
para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas,
quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da
gestação, já é um bem que transferimos, se transferimos a espera para gerações
futuras, pois há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude
da ave que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e
tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há
milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.
— Ninguém vive só de semear, pai.
— Claro que não, meu filho; se outros
hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que
semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.
— Isso já não me encanta, sei hoje do
que é capaz esta corrente; os que semeiam e não colhem, colhem contudo do que
não plantaram; deste legado, pai, não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo
para frente? Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus
pés também; por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não
vejo diferença, tanto faz que as coisas andem para frente ou que elas andem
para trás.
— Não quero acreditar no pouco que te
entendo, meu filho.
— Não se pode esperar de um
prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma,
pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto;
maior despropósito que isso só mesmo a vileza do aleijão que, na falta das
mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência
proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre
os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo...
— Continue.
— E fica também mais pobre o pobre
que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo
que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os
valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros,
e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa
que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa
pantomima atirada por seu cinismo.
— É muito estranho o que estou
ouvindo.
— Estranho é o mundo, pai, que só se
une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há
nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.
— Não vejo como todas essas coisas se
relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer
dizer com tudo isso?
— Não quero dizer nada.
— Você está perturbado, meu filho.
— Não, pai, eu não estou perturbado.
— De quem você estava falando?
— De ninguém em particular; eu só
estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede
e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu
pensava.
— Quero te entender, meu filho, mas
já não entendo nada.
— Misturo coisas quando falo, não desconheço
esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde
me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há
farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro.
Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou
dizendo.
— Mas sonega clareza para o teu pai.
— Já disse que não acredito na
discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso
quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu
núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do
casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só
para expor ao mundo sua fragilidade.
— Corrija a displicência dos teus
modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família,
que só um insano tomaria por ambiente hostil.
— Forte ou fraco, isso depende: a
realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora
o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos
que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos
arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas
para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte,
a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida.
— Você me assusta, meu filho, sem te
entender, entendo contudo teus disparates: não há hostilidade nesta casa, ninguém
te nega aqui o direito à vida, não é sequer admissível que te passe esse
absurdo pela cabeça!
— É um ponto de vista.
— Refreie tua costumeira
impulsividade, não responda desta forma para não ferir o teu pai. Não é um
ponto de vista! Todos nós sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua
mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem
necessitasse, o apoio da família!
— O senhor não me entendeu, pai.
— Como posso te entender, meu filho?
Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você
encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?
— Em parte alguma, menos ainda na
família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu
ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda
palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga
explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.
— Não receba com suspeita e
leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa
com nosso amor!
— O amor que aprendemos aqui, pai, só
muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele
um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do
que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria
nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que
se imagina.
— Já basta de extravagâncias, não
prossiga mais neste caminho, não se aproveitam teus discernimentos, existe
anarquia no teu pensamento, ponha um ponto na tua arrogância, seja simples no
uso da palavra!
— Não acho que sejam extravagâncias,
se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim
que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se
eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele
simplesmente um ramo de urtigas.
— Nesta mesa não há lugar para
provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua
língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio, me responda como deve responder
um filho, seja sobretudo humilde na postura, seja claro como deve ser um homem,
acabe de uma vez com esta confusão!
— Se sou confuso, se evito ser mais
claro, pai, é que não quero criar mais confusão.
— Cale-se! Não vem desta fonte a
nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que
vai demolir agora o que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa
há de falar com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras,
embaralhando as idéias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que
abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em
nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz,
capaz como a escuridão de nos cegar; ninguém ainda em nossa casa há de dar um
curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não
pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá
frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina, a nossa
simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz; por isso, dobre
a tua língua, eu já disse, nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos
da família! Não foi o amor, como eu pensava, mas o orgulho, o desprezo e o
egoísmo que te trouxeram de volta à casa!
Quanta amargura meu pai juntava à sua
cólera! E que veleidade a minha, expor-lhe a carcaça de um pensamento, ter
triturado na mesa imprópria uns fiapos de ossos, tão minguados diante da força
poderosa de sua figura à cabeceira. Encolhido, senti num momento a presença da
mãe às minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali
na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem me voltar,
pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos
para o meu pai: "Chega, Iohána! Poupe nosso filho!"
— Estou cansado, pai, me perdoe.
Reconheço minha confusão, reconheço que não me fiz entender, mas agora serei
claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de orgulho como o senhor
pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que
é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter
me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero ser como
meus irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem atribuídas,
chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os
deixarei bem depois de o sol se pôr; farei do trabalho a minha religião, farei
do cansaço a minha embriaguez, vou contribuir para preservar nossa união, quero
merecer
de coração sincero, pai, todo o teu
amor.
— Tuas palavras abrem meu coração,
querido filho, sinto uma luz nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de
alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao abandonar a casa,
apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um
instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda
num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou
a vista! Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi longa, a emoção foi
grande, vai descansar, querido filho.
E o meu suposto recuo na discussão
com o pai logo recebia uma segunda recompensa: minha cabeça foi de repente
tomada pelas mãos da mãe, que se encontrava já então atrás da minha cadeira; me
entreguei feito menino à pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma
das faces contra o repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois
seus olhos, o nariz e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos,
espalhando ali, em língua estranha, as palavras ternas com que sempre me
brindara desde criança: "meus olhos" "meu coração"
"meu cordeiro"; largado naquele berço, vi que o pai saía para o
pátio, grave, como se todo aquele transbordamento de afeto se passasse à sua
revelia; empunhava o mesmo facão com que entrara pouco antes ali na copa, ia
agora reunirse de novo às minhas irmãs perdidas numa azáfama animada em torno
da mesa tosca, lá debaixo do telheiro dos fundos, onde preparavam as carnes
para a minha festa; e eu tinha os olhos nessa direção, e me perguntava pelos
motivos da minha volta, sem conseguir contudo delinear os contornos suspeitos
do meu retorno, quando notei, além do pátio, um pouco adentrado no bosque
escuro, o vulto de Pedro: andava cabisbaixo entre os troncos das árvores, o
passo lento, parecia sombrio, taciturno.
(Raduan
Nassar – Lavoura arcaica)
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