terça-feira, 7 de setembro de 2021

Minha melhor lembrança, em matéria de canção, e aliás uma das mais fortes emoções estéticas da minha vida, eu senti quando tinha uns vinte anos, no banheiro de um camping, não sei mais em que lugar de Portugal: eu estava no banheiro e, de repente, no meio daquele cheiro de urina e água sanitária, uma faxineira (só a vi ao sair: ela lavava o chão, vestida de preto, sem idade, as pernas incrivelmente peludas...) pôs-se a cantar: lá estava o fado eterno, o sofrimento eterno, a beleza eterna. Sem ódio, sem raiva, e também sem consolos, justificações, glorificações: a vida como ela é, atroz e preciosa, dilacerante e sublime, desesperadora e desesperada... A vida difícil, tão difícil. O destino, se você quiser (sabe, “fado” vem de “factum”), mas sem providência: as coisas tais como são, a vida tal como passa... O real, simplesmente. Sim, essa canção exprimia no fundo tudo que eu gostava, tudo de que gosto: a coragem em vez da raiva, a doçura em vez da violência, a misericórdia, em vez do ódio...

 

(André Comte-Sponville – O amor, a solidão)