sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O que é decisivo, em primeiro lugar, é manter a hipótese histórica de um mundo livre da lei do lucro e do interesse privado. Enquanto estivermos sujeitos, na ordem das representações intelectuais, à convicção de que não podemos acabar com isso, que essa é a lei do mundo, nenhuma política de emancipação será possível. É isso que propus chamar de hipótese comunista. Na realidade, ela é amplamente negativa, porque é mais seguro e mais importante dizer que o mundo tal como ele é não é necessário do que dizer “no vazio” que outro mundo é possível. É uma questão de lógica modal: naquela que se impõe politicamente, vamos da não necessidade à possibilidade. Simplesmente porque, se admitimos a necessidade da economia capitalista desenfreada e da política parlamentar que a sustenta, simplesmente não podemos ver, nessa situação, outras possibilidades.

Em segundo lugar, é preciso tentar manter as palavras de nossa linguagem, apesar de não ousarmos mais pronunciá-las, essas palavras que ainda eram de todo mundo em 1968. Há quem diga: “O mundo mudou, vocês não podem mais usá-las, vocês sabem muito bem que era uma linguagem de ilusão e terror”. Como não! Nós podemos! Nós devemos! O problema continua, portanto devemos poder usar essas palavras. Compete a nós criticá-las, dar a elas um novo sentido. Devemos poder dizer ainda “povo”, “operário”, “fim da propriedade privada” etc., sem sermos considerados antiquados aos nossos próprios olhos. Devemos discutir essas palavras em nosso próprio campo. É preciso acabar com o terrorismo linguístico que nos entrega aos inimigos. Abdicar da linguagem, aceitar o terror que nos proíbe intimamente de pronunciar as palavras que não se encaixam na conveniência dominante é uma opressão intolerável.

Enfim, devemos saber que toda política é organizada e a questão talvez mais difícil a resolver pelas experimentações multiformes que começaram em 1968 é saber de que tipo de organização precisamos. Porque o dispositivo clássico do partido, que se apoia em correspondentes sociais e cujos “combates” mais importantes são, na verdade, os combates eleitorais, é uma doutrina que já deu o que podia dar. Está gasta, não funciona mais, apesar das grandes coisas que pôde oferecer, ou acompanhar, entre 1900 e 1960.

O tratamento de nossa fidelidade a Maio de 1968 ocorre em dois níveis. No campo da ideologia e da história, convém fazermos nosso próprio balanço do século XX, de modo a reformular a hipótese da emancipação de acordo com as condições de nossa época, após o fracasso dos Estados socialistas. Por outro lado, sabemos que estão ocorrendo experiências locais, batalhas políticas, com base nas quais novas figuras de organização estão sendo criadas.

Essa combinação de trabalho ideológico e histórico complexo com dados teóricos e práticas envolvendo as novas formas de organização política define nossa época. Época que eu denominaria sem nenhuma dificuldade de a época da reformulação da hipótese comunista. Qual é então a virtude mais importante para nós? Vocês sabem que os revolucionários de 1792-1794 utilizavam a palavra “virtude”. Saint-Just perguntava, pergunta capital: “Que querem os que não querem nem a virtude nem o terror?”. E respondia: “Eles querem a corrupção”. E é exatamente isso que o mundo exige de nós hoje: aceitar a corrupção generalizada dos espíritos, sob o jugo da mercadoria e do dinheiro. Contra isso, a principal virtude política hoje é a coragem. Coragem não apenas diante da polícia – e isso acontecerá, sem dúvida nenhuma –, mas a coragem de defender e praticar nossas ideias, nossos princípios e nossas palavras, afirmar o que pensamos, o que queremos, o que fazemos.

Em uma frase: devemos ter a coragem de ter uma ideia. Uma grande ideia. Devemos ter convicção de que ter uma grande ideia não é nem ridículo nem criminoso. O mundo do capitalismo generalizado e arrogante em que vivemos nos leva de volta aos anos 1840, ao capitalismo nascente, cujo imperativo, formulado por Guizot, é: “Enriquecei-vos!”. O que traduzimos por: “Vivam sem ideia”. Devemos dizer que não se vive sem ideia. Devemos dizer: “Tenham a coragem de sustentar a ideia, que só pode ser a ideia comunista, em seu sentido genérico”. É por isso que continuamos contemporâneos de Maio de 1968. À sua maneira, ele declarou que a vida sem ideia é insuportável. Desde então, uma longa, uma terrível resignação se estabeleceu. Hoje, pessoas demais acreditam que viver para elas mesmas, para seus próprios interesses, é inelutável. Devemos ter a coragem de nos distinguir dessas pessoas. Como em 1968, rejeitaremos o imperativo: “Viva sem ideia”. O filósofo que sou está dizendo a vocês uma coisa que vem sendo repetida desde Platão, uma coisa muito simples. Ele diz que é preciso viver com uma ideia e que, com essa convicção, começa o que merece ser chamado de a verdadeira política.

(Alain Badiou – Maio de 1968 revisitado)