domingo, 9 de agosto de 2020

- Tenho a impressão de que você, porque vai matar-se, me quer esmagar com sua superioridade...

 

- Fico espantadíssimo vendo que os homens continuam a viver, disse Kirilov, que novamente não escutara a observação de Pior Stepanovitch.

 

- Hum! admitamos, é uma idéia, mas...

 

- Macaco! és muito solícito em concordar, a fim de te apoderares de mim. Cala-te! Não compreendes nada. Se Deus não existe, eu sou Deus.

 

- É precisamente isso que nunca pude compreender em você: por que é Deus?

 

- Se Deus existe, toda vontade lhe pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade.

 

- Sua própria vontade? E por que deve proclamar?

 

- Porque é a mim, doravante, que toda vontade pertence. Será possível que não haja ninguém, no planeta inteiro, que após matar a Deus, acreditando na sua própria vontade, atreva-se a proclamar essa vontade na sua forma suprema? É como um pobre que herdasse uma fortuna, e tremesse, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se muito fraco para tal façanha. Quero proclamar minha própria vontade. Mesmo que eu seja o único, hei de o fazer.

 

- Pois faça-o.

 

- Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade.

 

- Mas você não é o único. Muitas pessoas se suicidaram antes.

 

- Por razões sem importância. Mas sem nenhuma razão, simplesmente a fim de proclamar a sua vontade, eu sou o único.

 

“Não ele não se há de matar”, pensou Pior Stepanovitch. E disse:

 

- Pois fique sabendo que eu, se estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso lhe indicar a quem matar. E nesse caso, você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A gente entraria numa combinação.

 

- Matar a outrem, seria a mais baixa manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu quero a forma suprema, e hei de matar-me.

 

“Tirou isso do próprio bestunto”, resmungou irritado Pior Stepanovitch.

 

- Tenho que proclamar minha incredulidade, tornou Kirilov que continuava a caminhar dum lado para o outro. Para mim, a idéia mais elevada é a negação da existência de Deus. Toda a história da humanidade me presta testemunho. Até agora o homem não tem feito senão inventar Deus, a fim de viver sem matar-se; é essa a história do mundo até nossos dias! Só eu, pela primeira vez na história do mundo, recusei-me a inventar Deus. Saibam-no todos, de uma vez para sempre!

 

(Fiódor Dostoiévski – Os demônios)   


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