- Tenho a impressão de que você, porque
vai matar-se, me quer esmagar com sua superioridade...
- Fico espantadíssimo vendo que os
homens continuam a viver, disse Kirilov, que novamente não escutara a
observação de Pior Stepanovitch.
- Hum! admitamos, é uma idéia, mas...
- Macaco! és muito solícito em
concordar, a fim de te apoderares de mim. Cala-te! Não compreendes nada. Se
Deus não existe, eu sou Deus.
- É precisamente isso que nunca pude
compreender em você: por que é Deus?
- Se Deus existe, toda vontade lhe
pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me
pertence, e devo proclamar minha própria vontade.
- Sua própria vontade? E por que deve
proclamar?
- Porque é a mim, doravante, que toda
vontade pertence. Será possível que não haja ninguém, no planeta inteiro, que
após matar a Deus, acreditando na sua própria vontade, atreva-se a proclamar
essa vontade na sua forma suprema? É como um pobre que herdasse uma fortuna, e
tremesse, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se
muito fraco para tal façanha. Quero proclamar minha própria vontade. Mesmo que
eu seja o único, hei de o fazer.
- Pois faça-o.
- Tenho que meter uma bala na cabeça
porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade.
- Mas você não é o único. Muitas pessoas
se suicidaram antes.
- Por razões sem importância. Mas sem
nenhuma razão, simplesmente a fim de proclamar a sua vontade, eu sou o único.
“Não ele não se há de matar”, pensou Pior
Stepanovitch. E disse:
- Pois fique sabendo que eu, se
estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não
matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso lhe indicar a
quem matar. E nesse caso, você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A
gente entraria numa combinação.
- Matar a outrem, seria a mais baixa
manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu
quero a forma suprema, e hei de matar-me.
“Tirou isso do próprio bestunto”,
resmungou irritado Pior Stepanovitch.
- Tenho que proclamar minha
incredulidade, tornou Kirilov que continuava a caminhar dum lado para o outro.
Para mim, a idéia mais elevada é a negação da existência de Deus. Toda a
história da humanidade me presta testemunho. Até agora o homem não tem feito
senão inventar Deus, a fim de viver sem matar-se; é essa a história do mundo
até nossos dias! Só eu, pela primeira vez na história do mundo, recusei-me a inventar
Deus. Saibam-no todos, de uma vez para sempre!
(Fiódor Dostoiévski – Os demônios)
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