domingo, 14 de julho de 2019

Permanece em Guevara o que denominei figura do leitor. Aquele que está isolado, o sedentário em meio à marcha da história, contraposto ao político. O leitor como aquele que persevera, tranquilo, no deciframento dos signos. Aquele que constrói o sentido no isolamento e na solidão. Fora de qualquer contexto, em meio a qualquer situação, por força da própria determinação. Intransigente, pedagogo de si mesmo e de todos, nunca perde a convicção absoluta da verdade que decifrou. Uma figura extrema do intelectual como representante puro da construção do sentido (ou, em todo caso, de certa maneira de construir o sentido).

E no fim de Guevara as duas figuras voltam a unir-se, porque estão juntas desde o início. Há uma cena que funciona quase como uma alegoria: antes de ser assassinado, Guevara passa a noite anterior na escolinha de La Higuera. A única que assume uma atitude caridosa com ele é a professora do lugar, Julia Cortés, que lhe leva um prato do guisado que sua mãe está preparando. Quando entra, encontra Che jogado no chão da sala de aula, ferido. Então  e isso é a última coisa dita por Guevara, suas últimas palavras  Guevara mostra à professora uma frase escrita na lousa e lhe diz que a frase não está correta, que tem um erro. Com sua ênfase na perfeição, ele lhe diz: "Falta o acento". Faz essa pequena recomendação à professora. A pedagogia sempre, até o último momento. 

A frase (escrita na lousa da escolinha de La Higuera) é: "Yo sé leer". Que a frase seja essa, que no fim de sua vida a última coisa que ele anote seja uma frase que tem a ver com a leitura, é como um oráculo, uma cristalização quase perfeita.

(Ricardo Piglia - O último leitor)

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