RELATÓRIO DE MAIO
Naquele maio
decidiu-se a opção
entre violão e violência
voaram paralelepípedos
exigindo a universidade crítica
e a paz das sandálias
fugindo ao palácio das negociações
martirizou os pés
na vala de encanamentos cortados
naquele maio
o fogo o fogo o fogo o fogo
vinha no vento do telex
soprado de muito longe
tornado muito perto
o delegado saiu prendendo
cortando cabelo
mandando dormir mais cedo
naquele maio
a Bolsa fechou por excesso de
instruções
que mandavam fazer o oposto do
contrário
ou
o contrário do contrário do
contrário
naquele inverno
o grupo Lire le Capital
reformulava a dialética anti-Hegel
e o estruturalismo continuava na
onda
passando à frente de Bonnie &
Clyde
sem desbancar McLuhan, Chacrinha e
o
teatro do absurdo
institucionalizado
Qorpo Santo é quem tinha razão
naquele maio
o túnel fechou cansado de servir
a eternos carros e personas
que nunca lhe agradeceram
a abertura para o Sul e para o
Norte
naquele maio
os mendigos dormiam abraçados
no gelo da rua
não por amor: para cada um
tirar o quentinho do outro
naquele maio
os municípios eram divididos
em dois pelotões: os autônomos
até certo ponto
e os tutelados
oh tão melhor ser tutelado: vinha
um homem
fardado por fora ou por dentro
dizia o que era lícito fazer
dispensando os cidadãos da difícil
escolha
entre o azul e o amarelo
o bom e o mau
o nariz e a gaivota
a laranja e a banana
o X e o Y
naquele maio
o Ibope consolava o Governo
meu querido
saiba que tem havido outros piores
mas não pergunte mais que eu não
respondo
naquele maio
as manhãs eram lindíssimas, as
tardes
pingavam chuva fina
o mar entristecia
a luz era cortada de repente
como prefixo da morte
e mesmo assim na treva uma ave
tonta
riscava o céu naquele maio
(Carlos Drummond de Andrade,
26.05.1968)
Nenhum comentário:
Postar um comentário