sábado, 21 de dezembro de 2024

 

O caso de Lindalva é especial. Descasou cedo de um fazendeiro de Marajó e aos 21 anos já estava no Rio com as pernas e cintura que Deus lhe dera de benções. Dizem que mulher paraense tem perna fina e bunda seca. Injustiça do vulgo. Aí está Lindalva até hoje, cada dia mais bem feita, ainda que perto dos quarenta. Passou dez anos no Rio (deixou com a mãe a filha pequenina) fazendo michê com clientes de hotel cinco estrelas. Até que arranjou um namorado, também fazendeiro, só que paulista. Já estava de malas e corações prontos para acompanhar o ricaço quando descobriu que ele era casado, com mansão na Avenida Paulista. Lindalva não conversou, nem se despediu, mais que tudo não chorou: tomou avião para Belém do Pará. Foi ver a filha, já taludinha, no internato do colégio de freiras, passou um fim de semana com ela no Mosqueiro, reviu duas ou três antigas amizades de escola e de procissão de festa do Círio de Nazaré. Uma delas mudou o caminho de Lindalva. Estava chegando do garimpo de Itaituba, para onde fora a fim de fazer a vida, vivia então como a amiga estava vendo, tudo do bom e do melhor, e com dinheiro no over. Lindalva, dona de duas sílabas sinceras, e que já tinha a vocação profissional, não fez outra coisa que mudar de praça. Uma semana depois já estava de casa alugada na capital do garimpo do Tapajós. Vistosa, cadeiruda, olhar de onça fingida, Lindalva virou a cabeça dos pobres e começou a esvaziar os bolsos dos endinheirados. Só dava pra piloto ou pra dono de pista, de vez em quando para um garimpeiro que bamburrava. Lindalva ficou menos de um ano, um dia sem mais nem menos desapareceu: é verdade que entrou no avião rindo feliz e dando pra todo mundo. Ganhou seu bom dinheiro, suado, graças aos seus naturais talentos mas também à sua engenhosa imaginação. Asseguro que o fato é verídico, quem me contou – e contou rindo – passou pelas artes dela.

 

Lindalva fazia tudo o que sabia para fazer o parceiro feliz. Assunto resolvido, ela já no robe de seda, o homem pedia mais. Ela não dizia que não, mas condicionava: só se for como eu gosto. Lindalva gostava era assim: endurecia o pau do cabra, até deixá-lo tinindo. Depois lambuzava todinho, devagar, com manteiga. Agora, dizia ela, polvilha ele com ouro, até ficar como se fosse um pau feito de ouro de verdade. Naquela altura dos conformes o homem não se fazia de rogado. Vem depressa, pedia Lindalva, como se estivesse faminta de macho e não de metal. Quando o parceiro já não dava mais, a moça chegava com uma bacia esmaltada e um lenço de seda, sabonete perfumado e lavava, cuidadosa, delicadamente, o pau do camarada, no qual não ficava o mais ínfimo pozinho.

 

Quando se via só, Lindalva partia para a segunda parte da extração do ouro: o que lhe ficara dentro da buceta. De cócoras sobre a mesma bacia, ela injetava um abundante jorro de água na vagina com a ajuda de uma pera de borracha adequada a esse tipo de operação.

 

Lindalva acabou cheia de grana com a sua invenção do cacete dourado.

 

(Thiago de Mello – Amazônia: a menina dos olhos)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

 

Saímos de Manaus numa lancha pequena, e no meio da manhã navegamos no coração do arquipélago das Anavilhanas. A ânsia de encontrar Dinaura me deixou desnorteado. A ânsia e as lembranças da Boa Vida. A visão do rio Negro derrotou meu desejo de esquecer o Uaicurapá. E a paisagem da infância reacendeu minha memória, tanto tempo depois. Costelas de areia branca e estirões de praia em contraste com a água escura; lagos cercados por uma vegetação densa; poças enormes, formadas pela vazante, e ilhas que pareciam continente. Seria possível encontrar uma mulher naquela natureza tão grandiosa? No fim da manhã alcançamos o paraná do Anum e avistamos a ilha do Eldorado. O prático amarrou os cabos da lancha no tronco de uma árvore; depois procuramos o varadouro indicado no mapa. A caminhada de mais de duas horas na floresta foi penosa, difícil. No fim do atalho, vimos o lago do Eldorado. A água preta, quase azulada. E a superfície lisa e quieta como um espelho deitado na noite. Não havia beleza igual. Poucas casas de madeira entre a margem e a floresta. Nenhuma voz. Nenhuma criança, que a gente sempre vê nos povoados mais isolados do Amazonas. Os sons dos pássaros só aumentavam o silêncio. Numa casa com teto de palha pensei ter visto um rosto. Bati à porta, e nada. Entrei e vasculhei os dois cômodos separados por um tabique da minha altura. Um volume escuro tremia num canto. Fui até lá, me agachei e vi um ninho de baratas-cascudas. Senti um abafamento; o cheiro e o asco dos insetos me deram um suadouro. Lá fora, a imensidão do lago e da floresta. E silêncio. Aquele lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão.

 

(Milton Hatoum – Órfãos do Eldorado)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Ao borrar a fronteira entre realidade e ficção, Cervantes não apenas celebra a gênese desta como tal. A incerteza de lugar, nome e ação cumpre uma função política, leva a desconfiar de todo dogma, sejam os do Concílio de Trento, das leis da pureza de sangue ou da Santa Inquisição. Cuidado, Torquemada.

 

(Carlos Fuentes – O milagre de Machado de Assis) 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

 

A ESCANDALOSA BELEZA DO MAL

 

O que me irrita em Adorno é o método do curto-circuito que liga com uma facilidade perigosa as obras de arte às causas, às consequências ou às significações políticas (sociológicas); as reflexões extremamente cheias de nuances (os conhecimentos musicológicos de Adorno são admiráveis) levam desse modo a conclusões extremamente pobres; na verdade, visto que as tendências políticas de uma época são sempre redutíveis  a duas únicas tendências opostas, acabamos por classificar uma obra de arte no lado do progresso ou no lado da reação; e como a reação é o mal, a inquisição pode abrir seus processos.

 

A sagração da primavera: um balé que termina com o sacrifício de uma moça que deve morrer para que a primavera ressuscite. Adorno: Stravinski está do lado da barbárie; sua “música não se identifica com a vítima, mas com a instância destrutiva” (pergunto-me: por que o verbo “identificar-se?” como é que Adorno sabe se Stravinski “se identifica” ou não? por que não dizer “pinta”, “faz um retrato?”, “uma figura”, “representa”? resposta: porque apenas a identificação com o mal é culpada e pode legitimar um processo).

 

Desde sempre, profunda, violentamente, detesto aqueles que querem encontrar numa obra de arte uma atitude (política, filosófica, religiosa etc), em vez de procurar uma intenção de conhecer, de compreender, de apreender este ou aquele aspecto da realidade. A música, antes de Stravinski, nunca soubera dar uma forma aos ritos bárbaros. Não se sabia imaginá-los musicalmente. O que quer dizer: não se sabia imaginar a beleza da barbárie. Sem sua beleza, essa barbárie continuaria incompreensível. (Frisando: para conhecer a fundo esse ou aquele fenômeno, é preciso compreender sua beleza, real ou potencial.) Dizer que um rito sangrento possui uma beleza, eis o escândalo, insuportável, inaceitável. No entanto, sem compreender esse escândalo, sem ir até o fundo desse escândalo, não podemos compreender grande coisa sobre o homem. Stravinski dá ao rito bárbaro uma forma musical forte, convincente, mas que não mente: escutemos a última sequência da Sagração, a dança do sacrifício: o horror não é escamoteado. Está lá. Que seja apenas mostrado? Que não seja denunciado? Mas se ele fosse denunciado, isto é, privado de sua beleza, mostrado em sua feiura, seria uma deslealdade, uma simplificação, uma “propaganda”. É porque é belo que o assassinato da moça é tão terrível.

 

Assim como ele fez um retrato da missa, um retrato de uma festa campestre (Petrouchka). Stravinski fez aqui o retrato do êxtase bárbaro. É ainda mais interessante que ele tenha se declarado sempre e explicitamente partidário do princípio apolíneo, contrário ao princípio dionisíaco: A sagração da primavera (notadamente suas danças rituais) é o retrato apolíneo do êxtase dionisíaco: nesse retrato, os elementos extáticos (a batida agressiva do ritmo, alguns motivos melódicos extremamente curtos, muitas vezes repetidos, nunca desenvolvidos e parecendo gritos) são transformados em grande arte requintada (por exemplo, o ritmo, apesar de sua agressividade, torna-se tão  complexo na alternância rápida de compassos diferentes que cria um tempo artificial, irreal, inteiramente estilizado); no entanto, a beleza apolínea desse retrato da barbárie não esconde o horror; ela nos mostra que no fundo do êxtase não se encontra senão a dureza do ritmo, as batidas severas da percussão, a insensibilidade extrema, a morte.  


(Milan Kundera - Os testamentos traídos)

domingo, 1 de dezembro de 2024

 

Andar é mapear com os pés. Ajuda-nos a unir peças de uma cidade, conectando bairros que, de outro modo, ficariam como entidades avulsas, planetas diferentes ligados entre si, sustentando-se embora distantes. Gosto de ver como, na verdade, se mesclam, gosto de perceber os limites entre eles. Andar ajuda a me sentir em casa. Há um leve prazer em ver como vim a conhecer bem a cidade com minhas andanças a pé, atravessando bairros diferentes da cidade, alguns que eu conhecia bastante bem, outros que posso ter deixado de ver por algum tempo, como se retomasse contanto com alguém que conheci certa vez numa festa.

 

Às vezes ando porque estou com a cabeça cheia de coisas, e andar me ajuda a encaminhá-las. Solvitur ambulando, como dizem em latim, solucionar andando.

 

[...]

 

Ando porque, de certa forma, é como ler. Ficamos inteirados dessas vidas e conversas que não têm nada a ver conosco, mas que podemos entreouvir. Às vezes o ambiente está superlotado; às vezes as vozes são altas demais. Mas há sempre companhia. A gente não está só. A gente anda na cidade com os vivos e os mortos, lado a lado.

 

(Lauren Elkin – Flâneuse)