quinta-feira, 31 de outubro de 2024

 

A poesia é uma ação passageira ou solene em que entram em medidas iguais a solidão e a solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade de si mesmo, a intimidade do homem e a secreta revelação da natureza.

 

(Pablo Neruda – A poesia não terá cantado em vão)

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

 

O tempo lava e desenvolve, ordena e continua. E, então, que fica das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade? Nada, e na casa da poesia nada permanece a não ser o que foi escrito com sangue para ser ouvido pelo sangue.

 

(Pablo Neruda – Conduta e poesia)

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

O meu avô foi preso três vezes e torturado pela polícia política. Nunca falava disso. Quase vinte anos depois da sua morte, o meu pai descobriu um livro – na biblioteca dele – chamado Eles vieram de madrugada, da autoria de Manuela Câncio Reis. Na página de rosto, o meu avô dedicou-me umas palavras. Tinha eu onze anos na altura em que ele as escreveu. Foi com emoção que abri o livro e li:

 

Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que eu passei.

 

Este livro deixou então de ser de Manuela Câncio Reis para passar a ser o livro que o meu avô me escreveu. E a voz que eu ouvi enquanto li o livro era a sua.

 

(Afonso Cruz – O vício dos livros)

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

 

Na minha vida de poeta os meus contatos têm sido sempre com gente nova, o que talvez explique que venha envelhecendo devagar. Não é que eu tenha, em tempo algum, procurado os novos: jamais procurei ninguém, o que de minha parte era timidez, não orgulho. Mas sempre, desde Afonso Lopes de Almeida e Ribeiro Couto, fui procurado por gente mais moça que eu. Estreei com uma geração que não era a minha, e nas gerações seguintes vim encontrando grandes amigos em suas maiores figuras. Agora está aí roncando bravura a chamada geração de 45: há nela uma meia dúzia de talentos que não me toleram nem como poeta nem como homem. Dou-lhes razão, porque, como o dr. Strauss do meu confrade Austregésilo, eu “positivamente não gosto de mim”. Mas eles acabarão gostando: sei, por experiência, que no Brasil todo sujeito inteligente acaba gostando de mim.

 

(Manuel Bandeira – Itinerário de Pasárgada)

domingo, 18 de agosto de 2024

 

Nos gramados regulares do Parque Ibirapuera
Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros
A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha
          imaginação
Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri
          para a banalidade dos móveis
Teus versos rebentam na noite como um potente batuque
          fermentado na rua Lopes Chaves
Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto
Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?
É noite. E tudo é noite.
É noite nos pára-lamas dos carros
É noite nas pedras
É noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
          como numa lagoa

É impossível que não haja nenhum poema teu
          escondido e adormecido no fundo deste parque
Olho para os adolescentes que enchem o gramado
          de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles?
          onde fica o pavilhão da Bahia?
          qual é o preço do amendoim?
          é você meu girassol?
A noite é interminável e os barcos de aluguel
          fundem-se no olhar tranquilo dos peixes
Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo
          seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noites de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Pauliceia voe por cima dos árvores
          suspensa em teu ritmo

 

(Roberto Piva – No parque Ibirapuera)

domingo, 7 de julho de 2024

 

[...]

uma noite metida na outra

como a língua na boca

eu diria

como uma gaveta no armário

metida no armário (mas

embaixo: o membro na vagina)

ou como roupas pretas

sem uso dentro da gaveta

ou como uma coisa suja

(uma culpa)

dentro de uma pessoa

enfim como

uma gaveta de lama

dentro de um armário de lama

[...]

 

(Ferreira Gullar – Poema sujo)

sexta-feira, 5 de julho de 2024

 

Estragon: Estou cansado. (Pausa) Vamos embora.

Vladimir: A gente não pode.

Estragon: Por quê?

Vladimir: Estamos espetando Godot.

Estragon: É mesmo. (Pausa) O que vamos fazer, então?

Vladimir: Não há nada a fazer.

Estragon: Mas não aguento mais.

 

(Samuel Beckett – Esperando Godot)