Minha melhor lembrança, em matéria de
canção, e aliás uma das mais fortes emoções estéticas da minha vida, eu senti
quando tinha uns vinte anos, no banheiro de um camping, não sei mais em que
lugar de Portugal: eu estava no banheiro e, de repente, no meio daquele cheiro
de urina e água sanitária, uma faxineira (só a vi ao sair: ela lavava o chão,
vestida de preto, sem idade, as pernas incrivelmente peludas...) pôs-se a
cantar: lá estava o fado eterno, o sofrimento eterno, a beleza eterna. Sem
ódio, sem raiva, e também sem consolos, justificações, glorificações: a vida
como ela é, atroz e preciosa, dilacerante e sublime, desesperadora e
desesperada... A vida difícil, tão difícil. O destino, se você quiser (sabe, “fado”
vem de “factum”), mas sem providência: as coisas tais como são, a vida tal como
passa... O real, simplesmente. Sim, essa canção exprimia no fundo tudo que eu
gostava, tudo de que gosto: a coragem em vez da raiva, a doçura em vez da
violência, a misericórdia, em vez do ódio...
(André Comte-Sponville – O amor, a solidão)
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