Camus
era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo
termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a
história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras
constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas. Seu humanismo
obstinado, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso
contra os acontecimentos em massa e disformes deste tempo. Mas, inversamente,
pela teimosia de suas repulsas, reafirmava, no coração de nossa época, contra
os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato
moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável afirmação. Por pouco que se o
lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os valores humanos que ele
sustentava em seu punho fechado, pondo em julgamento o ato político. Inclusive
seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano
do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da moralidade e entrar nos
incertos caminhos da prática. Nós o adivinhávamos e adivinhávamos também os
conflitos que calava, pois a moral, se considerada isoladamente, exige e
condena a rebelião. Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer
ou decidir à sua frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais
de nosso campo cultural, nem de representar à sua maneira a história da França
e de seu século.
A
ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária; nela se mata e
se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm e a combatem, os homens.
Nessa ordem Camus devia viver: este homem em marcha nos punha entre
interrogações, ele mesmo era uma interrogação que procurava sua resposta; vivia
no meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que
a ordem reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do
silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma obra e
as condições do momento histórico exigiram com tanta clareza que um escritor
vivesse.
Para
todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas, teremos que
aprender a ver esta obra truncada como uma obra total. Na medida mesmo em que o
humanismo de Camus contém uma atitude humana frente à morte que havia de
surpreendê-lo, na medida em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade
implicava e reclamava a necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta
obra e nesta vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de
um homem reconquistando cada instante de sua existência frente à sua morte
futura.
(Escrito
por Jean-Paul Sartre em 05 de janeiro de 1960, um dia após a morte de Albert
Camus)