quinta-feira, 10 de abril de 2025

Foi embora, como todas. Pois das tantas mulheres que passaram por sua vida, muitas por breves horas, não houve uma só a quem insinuasse a ideia de ficar. Em suas urgências de amor era capaz de mudar o mundo para ir encontrá-las. Uma vez saciado, bastava-lhe a sensação de tê-las presentes na lembrança, de se entregar a elas de longe em cartas arrebatadas, de lhes mandar presentes avassaladores para se defender do esquecimento, mas sem comprometer nem um mínimo de sua vida num sentimento mais parecido com a vaidade do que com o amor.


(Gabriel García Márquez - O general em seu labirinto)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

 

Proposição 42. A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não a desfrutamos porque refreamos os apetites lúbricos, mas, em vez disso, podemos refrear os apetites lúbricos porque a desfrutamos.

 

(Espinoza – Ética)

sábado, 15 de fevereiro de 2025

 

SPINOZA

 

Gosto de ver-te, grave e solitário,

Sob o fundo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário,

Na cabeça a coruscante ideia.

 

E enquanto o pensamento delineia

Uma filosofia, o pão diário

A tua mão a labutar granjeia

E achas na independência o teu salário.

 

Soem cá fora agitações e lutas,

Sibila o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, tu executas

 

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres e transmutas

O suado labor em prêmio eterno.

 

(Machado de Assis)

sábado, 4 de janeiro de 2025

 

Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas. Seu humanismo obstinado, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos em massa e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas repulsas, reafirmava, no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável afirmação. Por pouco que se o lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os valores humanos que ele sustentava em seu punho fechado, pondo em julgamento o ato político. Inclusive seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da moralidade e entrar nos incertos caminhos da prática. Nós o adivinhávamos e adivinhávamos também os conflitos que calava, pois a moral, se considerada isoladamente, exige e condena a rebelião. Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer ou decidir à sua frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nosso campo cultural, nem de representar à sua maneira a história da França e de seu século.

 

A ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária; nela se mata e se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm e a combatem, os homens. Nessa ordem Camus devia viver: este homem em marcha nos punha entre interrogações, ele mesmo era uma interrogação que procurava sua resposta; vivia no meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que a ordem reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma obra e as condições do momento histórico exigiram com tanta clareza que um escritor vivesse.

 

Para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas, teremos que aprender a ver esta obra truncada como uma obra total. Na medida mesmo em que o humanismo de Camus contém uma atitude humana frente à morte que havia de surpreendê-lo, na medida em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade implicava e reclamava a necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta obra e nesta vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de um homem reconquistando cada instante de sua existência frente à sua morte futura.

 

(Escrito por Jean-Paul Sartre em 05 de janeiro de 1960, um dia após a morte de Albert Camus)